Análise a Sophia de Mello Breyner na sua poesia de maresia

camila carreira, poetisa portuguesa, poemas do mar

Sophia de Mello Breyner poemas do mar


Mar, metade da minha alma é feita de maresia
Pois é pela mesma inquietação e nostalgia,
Que há no vasto clamor da maré cheia,
Que nunca nenhum bem me satisfez.
E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia
Mais fortes se levantam outra vez,
Que após cada queda caminho para a vida,
Por uma nova ilusão entontecida.

E se vou dizendo aos astros o meu mal
É porque também tu revoltado e teatral
Fazes soar a tua dor pelas alturas.
E se antes de tudo odeio e fujo
O que é impuro, profano e sujo,
É só porque as tuas ondas são puras.

A incontornável influência do mar na obra poética de Sophia de Mello Breyner


Sophia de Mello Breyner recorrendo ao uso de metáforas e idiossincrasias poéticas dos itinerários de solidão, exibe as contendas da sua identidade e identificação pura, com o mar.

A sua procura de expressar o seu fascínio pela renovação das ondas, como um sonho seu, pois que essas sim se renovam eternamente.
O seu ritmo interior, em união com o ritmo da natureza, do mar, sensível à dança cósmica, consciente do “ bailar secreto” dos sonhos e vigílias.
Atenta e unida ao devir do mar como espetáculo de luz e movimento sonoro, cantante e erotizante, o milagre do mar e do silêncio dos seus milagres interiores misteriosos.
O mar como reino de círculo de luz, coluna de sal e misteriosa Balança que equilibra a relação do sujeito lírico com o cosmos.
O mar como metáfora de liberdade para o “tempo dividido”, para as mulheres separadas dos seus homens, nas metáforas do pescador e do marinheiro real, na alegoria do pirata.
O mar onde a positividade da luz, da liberdade e do real pode neutralizar a necessidade da fábula da presença dos deuses, dos “fantasmas” e “almas”. Donde é clara a ambivalência da efabulação que, na poesia de Sophia, não é apenas retórica, mas com presença vivificante, em momentos de luz e de nostalgia, aproximável do discurso poético do Renascimento, embora liberto de estruturas poéticas e códigos literários como no século XVI.

Sobressai a economia de palavras, que povoa o texto poético de Sophia: Um verso que define uma idiossincrasia da sua alma poética, como se a maresia pudesse a um tempo constituir metade da essência da sua alma.
A essência da sua alma poética vive da cumplicidade da maresia e da sua identidade como respiração da brisa marinha, numa harmonia perfeita de ritmo vital anímico e espiritual em que confluem as metáforas vividas do mar, do ar e da brisa ou vento suave, ritmo da própria respiração vital do sujeito lírico.
Há muito que deixei aquela praia
De grandes areais e grandes vagas
Mas sou eu ainda quem na brisa respira
E é por mim que espera cintilando a maré vasa
Há muito, p. 48

As esperas e os espantos, as nostalgias da epopeia, estão visivelmente relacionadas. Sobre a espera na sua relação com a identidade poética do sujeito lírico. A poesia de Sophia vive muito de caminhadas, partidas e reencontros solitários, sendo a praia espaço de caminho, partida, reencontro, contemplação, renovação, até de esperança de regresso do post mortem para recuperar o não- vivido em plenitude e convertê-lo em vivido, na vida misteriosa liberta do peso da caducidade e da morte; ou para integrar toda a sua alma poética, identificada com a sua vida vivida junto do mar, em todos os instantes, e do instante para a eternidade, como libertação das contingências do tempo:
Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar
Inscrição, p. 40

Na poesia de Sophia, é relevante a identificação e identidade do sujeito lírico que se procura e encontra no seu próprio nome, relacionado com o acto de nomear pela palavra a essência do ser, a essencialidade do real, o “nome das coisas”. No poema “No mar passa”(p.26), o seu nome como essência do seu ser mais recôndito e identificado com o mar tem a expressão “o meu nome fantástico e secreto”, perpassa e ecoa no mar e é apenas reconhecido pelo espírito, pelas metáforas do espírito – “os anjos do vento”- que sopram onde e como quer, em movimentos de sopro que se aproxima, e repentinamente se afasta do sujeito lírico que exprime o encontro e a perda dos “anjos do vento”.

No universo poético de Sophia é importante o acto de reconhecer e ser reconhecido como exactidão de actos que é a justiça, muito em particular no plano ontológico. Na sua poesia, onde tudo se move com a maior liberdade, numa expressão rigorosa, próxima do cinema e do bailado, consideramos que o vento é, por vezes, a um tempo o sopro do ar e do espírito. A expressão “anjos do vento”, no mesmo poema, sintetiza a ideia de seres espirituais ou “puros espíritos”, de seres alados que se aproximam semanticamente de aves e pássaros que povoam a poesia de Sophia, em suma, a metáfora do voo do vento conciliável com o voo do espírito (vide metáfora do voo da “ave do espírito” no poema São Tiago , in Ilhas) (9); sintetiza ainda uma forma de dança do vento, integrada no que ousamos designar como dança cósmica, movimento contínuo da natureza integrada no cosmos que coloniza a poesia de Sophia, com a qual o sujeito lírico se encontra e da qual por vezes se perde, num ritmo natural:
No mar passa de onda em onda repetido
O meu nome fantástico e secreto
Que só os anjos do vento reconhecem
Quando os encontro e perco de repente
No mar passa , p. 26

O Mar, como espaço de liberdade

No poema Dia do mar no ar (p.20), e em particular nos seus primeiros livros de poesia, é clara a dualidade do espaço fechado (quarto) – espaço de liberdade (mar) que se reflecte na dualidade dos gestos ou movimentos do sujeito lírico, quer na comparação com as medusas - monstros marinhos com cabeça redonda, coberta de serpentes, asas longas, olhos potencialmente petrificadores dos seres que olham -,monstros como metáfora do inesperado, do confuso, no movimento humano - que deslizam “entre o animal e a flor”-, no espaço- quarto- cubo; quer na metáfora das gaivotas, como liberdade plena de voar e de se perder, fundindo-se no cosmos das ondas e das nuvens:
Dia do mar do meu quarto – cubo
Onde os meus gestos sonâmbulos deslizam
Entre o animal e a flor como medusas.
Dia do mar no ar, dia alto
Onde os meus gestos são gaivotas que se perdem
Rolando sobre as ondas, sobre as nuvens.
Dia do mar no ar, p. 20

O mar é também “espaço arfado” que se identifica com as origens e a renovação da vida do sujeito lírico, num processo que não está imbuído da fatalidade do eterno retorno das cosmologias pre-socráticas, mas insere-se no rito de passagem que impregna as viagens para o desconhecido e renova o sentido profundo, quase etimológico da aventura, ou seja, o caminho para o futuro, como se ao mesmo tempo se tratasse de um “rito do espanto e do começo”:
O mar azul e branco e as luzidias
Pedras – O arfado espaço
Onde o que está lavado se relava
Para o rito do espanto e do começo
Onde sou a mim mesma devolvida
Em sal espuma e concha regressada
À praia inicial da minha vida.
Inicial, p. 47

Neste texto desliza ainda o mito de Afrodite anadiómena, nas metáforas do “arfado espaço”, sal, espuma e concha, da “praia inicial da minha vida”, como se o sujeito lírico tivesse nascido, como Afrodite, da união do Céu e da Terra, da espuma de Urano, caída no mar. De novo a presença do mar. Um sujeito lírico que aspira à união cósmica e à sua impregnação pelo mar e o amor, na solidão e na espera, na praia, desde os primeiros livros de poemas.
De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.
Mar, p. 10

A união cósmica do sujeito lírico com o “mar, o vento e a lua” passa de aspiração a acto, neste poema, pelo espaço de êxtase e nudez da praia, sintonizando-se com a dança e harmonia cósmicas que perpassa no universo poético de Sophia de Mello Breyner, sintonizando-se também, na expressão de outro poema, com o “secreto bailar do meu sonho” que o som humanizado do mar- “a tua voz”- segue:
Mar sonoro, mar sem fundo mar sem fim.
camila carreira, poetisa portuguesa, poemas do mar

A tua beleza aumenta quando estamos sós.
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.
Mar Sonoro, p. 16

Neste mesmo poema, como no poema “ As ondas quebravam uma à uma”((p. 15), é clara a relação directa da solidão do sujeito com a solidão do próprio mar que, por sua vez, na sensibilidade do sujeito lírico, parece não seguir com a voz mas atingir o acto puro do canto apenas para ele-sujeito. A solidão do sujeito valoriza a beleza e o som do mar cujo espectáculo admirável – “milagre”- parece ser um dom apenas para o sujeito que o contempla. Donde o significado possível de que a contemplação como estado elevado de espírito do olhar do sujeito valoriza a beleza do elemento marinho e hiperbolicamente o reduz como objecto de um único contemplador que é o próprio sujeito, como se se tratasse de um olhar unitivo de absoluta cumplicidade, como unitivo e cúmplice é o canto do mar ou da espuma do mar:
As ondas quebravam uma à uma
Eu estava só com a areia e com a espuma
Do mar que cantava só p’ra mim
p.15

A mesma hipérbole do “milagre só para mim” que é um modo de exprimir essa via unitiva directa do sujeito lírico com o mar, prolonga-se no silêncio da “casa branca” em frente do mar, no seu jardim de flores marinhas, no silêncio onde permanecem a memória e o inconsciente adormecido da maravilha – “ o milagre”- interior, identificável com o “secreto bailar” interior:
Casa branca em frente ao mar enorme,
Com o teu jardim de areia e flores marinhas
E o teu silêncio intacto em quem dorme
O milagre das coisas que eram minhas.
Casa Branca, p. 13

O devir do mar é um espectáculo exterior, fonte de contemplação e união do sujeito lírico, um espectáculo de luz - nos poemas Meio-Dia (p. 11) e Alto Mar (p. 14) – onde ninguém, para além do sujeito lírico, parece verdadeiramente espraiar-se, abrir-se, avançar na liberdade, em oposição ao gesto livre da água que “não modula o sonho de ninguém”, marca da vivência colectiva de agonia e repressão que Sophia desenvolveu em poemas de resistência de grande densidade e de profunda consciência cívica, reunidos por ela própria na acima referida antologia Grades (1971):
Livre e verde a água ondula
Graça que não modula
O sonho de ninguém.

São claros e vastos os espaços
Onde baloiça o vento
E ninguém nunca de delícia ou de tormento
Abre neles os seus braços.
No Alto Mar, p. 14

O som do mar ouvido pelo sujeito lírico, para além da “voz” e do “canto”, é o som de quem “ parece bater palmas”, na festa e eco que esta expressão sugere, no espectáculo de luz e movimento puros, sem necessidade de efabulação, imaginação ou fantástico, na solidão da própria praia:
Meio-dia. Um canto da praia sem ninguém.
Não há fantasmas nem almas,
E o mar imenso, solitário e antigo,
Parece bater palmas.
Meio-Dia, p. 11

O sol no seu fulgor cósmico apaga ou neutraliza o esplendor mítico, como se o real fosse uma força superior à da fabula poética:
O sol no alto, fundo, enorme, aberto,
Tornou o céu de todo o deus deserto.
Meio-Dia, 2-3,p. 11

A luz inunda a planície do mar, mas ninguém cria gestos luminosos:
O Sol brilha enorme
Sem que ninguém forme
Gestos na sua luz.
No Alto Mar, 6-8, p. 14

Noutros poemas, é o som sugerido pelo movimento das ondas como braços que tombam de bruços – Praia, p. 27 -, o movimento das vagas e ondas não raro comparadas ao arremesso de toiro – A Vaga, 1, p. 37; Praia,9,p. 23-, a mulheres deitadas na areia ou a uma bailarina – A Vaga, 7-10, p. 37 -. O movimento do sacudir das crinas do cavalo é uma metáfora que atravessa a poesia de Sophia , no mar – A Vaga,2-3, p. 37; Onda, 4, p. 71 – ; no vento – “ os quatro cavalos do Vento sacodem as suas crinas” in Marinheiro sem Mar, in Mar Novo -. O poema Ondas (p.71) que fecha esta antologia por pertencer ao livro Musa, sintetiza a rara beleza das ondas como os “mais belos cavalos”, a “mais bela crina sacudida”, o movimento erótico e erotizante do mar:
Onde mais bela crina sacudida
Ou impetuoso arfar no mar imenso
Onde tão ébrio amor em vasta praia
Ondas, p.71

Do erotismo do mar ao erotismo feminino e à liberdade, alguns poemas de Sophia, e em particular os que integram Mar-Poesia, exprimem a liberdade através de metáforas de movimentos de braços femininos à beira-mar, em gestos de liberdade com expressão hiperbólica - “lançam os braços pela praia fora e a brancura/ dos seus pulsos penetra nas espumas”-, integrados e confundidos com a dança do mar e do vento – “Confundindo os seus cabelos com os cabelos/ do vento” - ou prolongando e tocando o movimento do ar, do vento, do mar,- “aspiram longamente/a virgindade de um mundo que nasceu", de um mundo novo de união ao que chamamos dança cósmica, um novo mundo de liberdade -, no poema Mulheres à Beira-Mar (p.22), inspirado num quadro de Picasso.

Nesta mesma antologia, encontramos também o crescendo do que vimos atrás como puro som, pura luz no mar, abarcando a metáfora do “puro espaço e lúcida unidade” do mar, apenas ritmado pelas ondas, no poema Liberdade (p.28).Espaço onde o tempo que, na poesia de Sophia é indissociável da divisão, associado à cidade, às “ruas”, como metáfora da civilização que afasta o Homem da sua unidade; “ puro espaço” onde o tempo “dividido”, na expressão tópica de Sophia, ao longo da sua obra poética, encontra a sua liberdade, deixando de ser “dividido”, sobretudo como realidade e metáfora, no plano profundo e ontológico do Homem contemporâneo, para se tornar livre e implicitamente uno ou unificado, no “puro espaço e lúcida unidade” da praia e das ondas ritmadas. Trata-se de uma mudança dentro do universo das mudanças e fracturas do tempo, mais que uma mudança, uma conversão do tempo dividido em tempo uno e implicitamente lúcido, como intuição do sujeito lírico ao contemplar meditando o espaço de uma praia, como aspiração sua a um mundo novo sem divisões nem insanidade, metaforizado no “puro espaço e lúcida unidade”:
Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.
Liberdade, p. 28

O mar como Reino

Tendo percorrido sucintamente, no presente trabalho, a partir de textos da antologia Mar-Poesia, metaforizações do mar como identidade, união e espera solitária do sujeito lírico, a sua contemplação do mar que agudiza o seu olhar do devir do mar, a sua consciência crítica sobre a importância da positividade da renovação interior do sujeito, do espanto, da dança cósmica do real, da luz que neutraliza a efabulação mítica, os fantasmas, o imaginário; da liberdade humana e do próprio tempo; toda essa procura e vivência poética vem corroborar a parte final do presente núcleo temático que incide sobre a lógica da positividade das metáforas das personagens que enfrentam e atravessam o mar, no quotidiano e nas viagens, a positividade do mar como reino. Reino onde convergem, no silêncio e na luz, as metáforas-geometrias perfeitas da “coluna de sal “ ou “eixo onde todos os equilíbrios são possíveis”; o “círculo de luz”, na sua irradiação; a medida exacta da “Balança misteriosa” da relação justa do homem com o cosmos, esta última a desenvolver no texto As Grutas (pp.38-39), no núcleo temático seguinte sobre a catábase marinha do sujeito lírico.
Vejamos a síntese poética da positividade do mar como Reino:
Reino de medusas e água lisa
Reino de silêncio luz e pedra
Habitação das formas espantosas
Coluna de sal e círculo de luz
Medida da Balança misteriosa
Reino, p. 35

Para além das metáforas do eixo-“coluna de sal”, do “círculo de luz” e da “Balança misteriosa” que vimos acima, o mar apresenta ainda o equilíbrio entre a água lisa e a inevitável presença do monstro - as medusas, monstros marinhos, metáfora do desconhecido e do inesperado, como atrás comentámos; a metáfora do espanto que atravessa, em variadas modulações, a poesia de Sophia, na expressão “Habitação das formas espantosas”. O espanto do mar, “o rito do espanto e do recomeço”, o espanto das navegações que, como veremos, irá ultrapassar o imaginário, o imaginado, a expectativa do viajante. O espanto sem o qual não existe poesia e, sem o qual, segundo Heidegger, no ensaio Was ist das die Philosophie, não existe filosofia. A capacidade de se espantar, de sentir o espanto - qaumaston - perante o mundo, o cosmos e o novo é comum ao filósofo, está presente na poesia de Camões e de Fernando Pessoa.

O Pescador, o Marinheiro Real e o Pirata
As metáforas do Pescador e do Marinheiro Real e a alegoria do Pirata sintetizam a coadunação dos que trabalham no mar com a excelência do Reino e a sua relação profunda com esse mesmo Reino. O Pescador (p. 33), tem uma relação de fraternidade com “as coisas”, supera as emoções, tem o que Sophia designa ao longo da sua obra poética como “inteireza do ser” (11), integra o mar e o céu na sua realidade ontológica, mantém a sua atenção e abertura ao mundo com “serena lucidez”, o saber a um tempo experimentado e distanciado, próximo da sabedoria.

O Marinheiro Real (p.29) é o verdadeiro marinheiro da realidade do mar que se opõe, na poesia de Sophia, ao atrás referido Marinheiro sem mar, in Mar Novo, que se “afastou do que era eterno”, “porque o mar secou”, “porque o destino apagou o seu nome dos astros” e caminha “nas obscuras ruas da cidade sem piedade” (12). O Marinheiro Real vive em paz, integra-se no ritmo do cosmos, cultiva essa mesma “inteireza”, atinge a perfeição, desconhece a cidade – “as ruas”:
Vem do mar azul o marinheiro
Vem tranquilo ritmado inteiro
Perfeito como um deus,
Alheio às ruas.
Marinheiro Real, p. 29

O Pirata (p.25) conjuga o gosto de estar só no seu barco com o gosto de se identificar com os mastros, de “uivar” com eles, de ser livre, na brisa, de integrar a suavidade do regresso. Não se identifica nem admira o mar, mas, como o herói bélico que mede as suas forças e cultiva o auto-domínio e o controlo das emoções e sentimentos profundos, o pirata exprime a sua força de auto-domínio sobre os perigos de estar sozinho no barco (13) , através do que chama “desprezo sobre o mar”. Tenta neutralizar a ideia de monstro identificável com o desconhecido ou o inimigo potencial que o poderá inesperadamente surpreender nas viagens (14), nas metáforas dos “monstros que não falam” (tigres e ursos) que amarrou aos remos e que à partida não o paralisam e ele sabe dominar . O Pirata é a alegoria do homem intrépido, viajante solitário, que à partida vence tudo o que é impeditivo ou destrutivo, como que uma aspiração ou realidade de todo o ser humano que nasce, percorre solitário a vida. O que apenas tenta definir na sua errância, com a maior beleza e dignidade, é a sua ligação ao vento, às flores e às aves, identificadas respectivamente com a pátria, a amada e o seu desejo, no final do poema, como um sonho/vigília permanente:
A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que fica das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.
Pirata, p. 25

Esta sua identificação corrobora a solidão do sujeito lírico da poesia de Sophia, a sua relação com a metáfora do vento que atrás explicámos, neste caso, com a ideia de que a pátria é onde sopra o vento cósmico e o vento do espírito; o amor é metáfora de árvores de flores – rosas, as preferidas, em toda a poesia de amor- a florirem; o desejo identifica-se com a ave, o rastro da ave, associada implicitamente à metáfora do voo do espírito (recorde-se ainda a “ave do espírito” do poema São Tiago, in Ilhas, que atrás referimos) (15) e/ou à liberdade das aves. É possível que, neste caso, a interpretação mais funda esteja relacionada com a liberdade das aves, dos piratas a que o sujeito lírico e os seres vivos aspiram, muito em particular na poesia de Sophia de Mello Breyner.
Na antologia Mar-Poesia que percorre toda a sua obra, a fábula dos deuses em particular “os deuses fantásticos do mar” é neutralizada ou corroborada em momentos de luz e reaparece em momentos de nostalgia, de melancolia, de morte, na expressão “os deuses”.

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