Poema: Reviver o passado, sem presente. (Análise do poema Futuro de José Saramago)

A vida escreve-se no presente
Mas toda me versa do passado
Vertida em memórias pujantes e estridentes
Derramadas impiedosas na alma
Persistem e assombram como fantasma
Nítidas e pesadas, vincadas
Ofuscam o presente como a tarde que vem e o dia apaga
Fria de luz fumacenta e vagarosa
esforço de sombras a arrastar
Horas sem fim, o passado sempre a chegar
O instante é abalroado
Condenado a nunca singrar
Extinguem-se sorrisos neste Novembro cinza e maduro
Porque o Outubro inevitável
- foi irremediável e duro -
Imutável e tão escuro
Janela que não abre nem dá sóis
E por mais que supere todas as alvoradas –
Não alcanço luz
Agrilhoada no peso cego das memórias
Vício que não me liberta do rigor,
Olhos presos lá atrás na dor
Fogueira viva onde regresso
a queimar quimeras como pétalas secas
Sou em mim meu único exílio
Em que o tempo se escreve depois
Vou por aí que nem sombras
A somar êxtases na orla das palavras que redijo vã


Camila Carreira 

Poemas de solidão - e partidas . (Teixeira de Pascoaes, in 'Elegias')








Nenhum corpo é isto...
uno e só
Ignorado e coroado em duros timbres.
latejo intenso ferindo os sentidos
onde a saudade é vício.
no ócio a alojamos como fome - imaginação adentro -
Longe além moram os saudosos
- olhos no lugar do tempo
sorriso triste no lugar da lua
Saudade içada ao vento
Bordada alinhada na geometria do poema

E há previsíveis retiros
almas que submergem frias,
Perdidas na raiz da caverna
Tolhidas no susto da dor
Uns procuram-nas alto nas ramagens de ouro.
Outros nas profundezas dos filões pétreos

E eis que só, definhas como água do mar ao sol
petrificada em cristal
Inspiras... Meros aromas de terra e mar
Não falas, mal respiras, suspendeste apenas
Com todo o peso da solidão
Onde o silêncio cai 
e o pensamento voa
Feroz, paciente, acometido, centrífugo...
Firme no vértice do abismo

Camila Carreira

Bebo página a página a vida boquiaberta de ternura

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PROFUSA E DEVOTA

Hoje trago-te versos íntimos – 
ondeiam-me soltos na alma 
Centelhas a colorir-me vidraças
Sorrio da felicidade quando fica simples 
Rede serena que pesca sonhos de amor 
Neste imprevisto mar onde me embalo
No aroma do quarto em que te beijo
No leito em que te sinto… 
Com a audácia crua dos amantes

Claustro que enclausura como em abraço 
Cerco-me de poemas em que germino
Amo em todas letras abstractas
Em todos os verbos das horas profusas
Em todas as noites alvas e confusas
Em madrugadas adjectivas de insónia
Amo sempre tanto e sem pressa 
E nós tão singulares aqui na memória
Tão fora desse cenário que apedreja 
Caídos em rituais de riso e olhares
Caprichosos com ênfase e em glória 
Com o cheiro a café no sulco das palavras

E o que escrevo é amor devoto
Entregue sem ressalvas nem condição 
Porque na hora que a ti regresso    
Bebo página a página a vida boquiaberta de ternura 
Todos os tempos são dias, nossos e brandos
mestria pacata do amor 
Proclamado na serenidade vibrante do olhar

Não quero colidir na frieza duma fraga 
Desabitada… inábil para acolher viva´alma  
Porque de repente... Tudo fica estéril e frio – 
já me não semeio nem germino – 
definho… e tudo me finda
sobram-me poemas e líquenes
Encrostados em almas e nos troncos   

Camila Carreira

Porque é a profundidade que amo

Brotem as palavras de tambores ou gerânios  
As vielas que fechadas se abram de par em par 
As noites negras que me dissipem
Pelas ruas, indo como num labirinto 
Enlevo-me em vestes retalhadas 
De todas as eiras e fainas 
conquistas e derrotas debulhadas
Pele e alma calejadas da lide 
Renascida na fascinação repentina que me anima 
Esmifro tudo que se me atira aos olhos 
Vejo tanto do todo que não se me apresenta 
Ímpetos sem tréguas encarnando emoções 
- e vós ai… amorfas corroendo fábulas antigas  
Carpireis lírios lúgubres em colchas inertes 
Bordareis em suspiros a sorte - a morte
Memórias rendilhadas repetidas de sujeição
Sibilando rancores e dós ignotos 
De quem sabe apenas o que lhe dão 
Aceitam sem aflição
- Sou impertinente para que suba a perplexão
Praguejo na praça atirando poemas
Empunho pedras e cravos como brados
Nasci garganta e grito séculos
Alimentei em mim estes exércitos

Talvez abrupta
Por nascer e morrer nesta berma desbotada 
Onde o que te mostram é nada
Onde os limites se pisam a toda a hora
Onde as revoluções se urdem
Recuso viver à superfície da coisa
Movo-me na intimidade de tudo
No âmago das dúvidas
Porque é a profundidade que amo
Se é a verdade que busco

Camila Carreira 

O teu e o meu amor… palavra a palavra sem rendição


Pousei há pouco o meu olhar 
nesta tão grande e singela poesia que é o mar
Redigida cúmplice do universo
Sintaxe indiscreta a desabotoar-me a alma
Efusivo vulcão que se excede em mim
Muita comoção… 
ânsia funda que me habita
A avidez de esmiuçar tristezas
Doutrinar raciocínios enormes
pensamentos onde me circundas
Nós a gemer a fome de todas as fomes
Mãos ambíguas roçam na pele
Olhares em desassossego 
- Irrompem de todos os lados –
O coração tem tantos caminhos
Tantas aparições com fôlegos e tortura

É este o talento das metáforas
Brotar sensações - 
derramar palavras nos silêncios
Ilegítimos diluvios do meu interior –
Confissões... do teu e o meu amor…
Degrau a degrau, palavra a palavra sem rendição –
Tanta iluminação poética a ferir-me –
No rigor das luzes 
Do interior tudo vem mais nítido
Imagens que ribombam no espaço
Pouso-as na íntima e difusa astúcia do poema
Exprimo-as sem contenção
E cabe-me toda a lírica no que traço

Camila Carreira 

Poema de amor e saudade... onde os poemas me nascem.

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Transborda solidão aqui longe de ti 
Dramática de cor gélida, invade 
Desabrigo que ninguém quer sentir
voo rasante que arrepia a espinha
Excomungado chão que ninguém ousa pisar
Este do desânimo de viver sem ti
Indolente deixo-me nele tingido das lágrimas
Que resvalam quentes atordoadas 
como os escombros que me constroem

Vagos desaires ameaçam desamor –
Distracção densa como que à espera do fim
Beijos de judas como que a olhar para mim
...oscilante fogo pousado na pressa de amar
- o tempo deixa marca mesmo das curtas travessias
Qual ciclone entrando-me pelo passado
e por lá rodopia de fogo e gelo – 
na primitiva descrença humana - 
na loucura dos corpos - 
na ancestral voz que me estremece o olhar
e o que escrevo sai desta fogueira de tempo
como grinalda ardida consumindo-me por dentro
... até à origem
onde os poemas me nascem
de sangue e carne… de saudade e alma
ardentes... desarrumados


Camila Carreira 

Poema de paixão. Trespasso-te no silêncio com amor e gestos ( Análise : poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen)

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Deito-me no soalho extremo da paixão
meia despida de barulho, vens 
E semeias sorrisos em mim toda
quero declamar-te versos límpidos- 
Que como barro dão forma ao sentir
moldam filosofias em verbos
humores da carne 
como líquenes no lado sombrio da oliveira -
brotos brotando da pele da alma 
de poros do corpo fiel ao teu
e nascem raízes profundas afiladas

Trespasso o silêncio com amor e gestos
Com onomatopeias de fogo na espada
é devastadora a palavra gemida 
Ofuscante a dança que nos une
A luz vem de dentro - o brilho vem de nós

E nas manhãs que nossos olhos se atravessam - 
o espanto aquieta-se com aroma a paz
Pensamentos fluem na mesma cláusula -
silêncios talhados na nossa cumplicidade. 
Juntos com serenidade dos bandos



Camila Carreira