Poema de amor e desilusão da paixão - O último poema de Fernando Pessoa

JARDIM DO ENGANO  
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Pelos estreitos recônditos da vida
Catei devota a senda de um amor
E foi em bucólicos becos na ida
Que me deleitei em aromas e cor

Ladeada de muros verdes cor de pedra
que se mesclam como amantes
Inspirei o odor do musgo, que lá medra
E meus olhos pausaram, verdejantes

Sonhei-te e vi-te entre o arvoredo
Amei-te e dei-me toda solta em ti
Temente adentrei-me perdi o medo
Amando o tudo que por ti senti

Procurei refúgio nos teus abraços
Alívio casto da solidão maldosa
Parti, desolada e sem criar laços
Eras caos e trevas… luz dolosa

Juras não cumpridas e inverdades
Rasgaram sonhos, frias e penetrantes
Revelando cobardias e deslealdades
Afeições ocas e delírios repugnantes

Decidi proibir-me de amar e sonhar
Cansada do engano e da incerteza
Aconchego-me no regaço da tristeza
Resigno-me serena invadida pela leveza
Apática de quem já nada quer esperar

**** Camila Carreira ***

Momentos de cultura e curiosidades poéticas... 


O último poema de Fernando Pessoa?

Qual foi o último poema de Fernando Pessoa?

Poderá ter sido com Madge em mente que Fernando Pessoa escreveu, a 22 de novembro de 1935, o poema “The happy sun is shinning” (em português “O sol feliz brilha”). O texto em inglês não é inédito — foi publicado pela primeira vez por Ángel Crespo, em 1989, e depois incluído na edição de poesia inglesa editada pela Assírio & Alvim em 2000 (com organização de Luísa Freire) e na edição de 2016, da mesma editora, organizada por Richard Zenith. Mas sempre com erros ou omissões, que José Barreto corrigiu para este número da Pessoa Plural. Os versos, como explicou o investigador, são dirigidos “a uma amada ausente ‘faraway’, por quem o coração do poeta anseia”. “Reforça o tom realístico desse poema a circunstância de se somar a outros, de temas afins, quiçá de ‘sinceridade’ variável, escritos no mesmo ano”, escreveu o historiador no artigo “A última paixão de Fernando Pessoa”.

A escrita de “The happy sun is shinning” coincide com a chegada à caixa de correio de Pessoa da última carta de Madge, datada de 14 de novembro, dia das eleições parlamentares em Inglaterra, às quais a inglesa se refere na missiva. Partindo do princípio que Madge enviou a carta no dia em que a escreveu, esta terá chegado a Portugal a 20 ou 21 de novembro, supõe o investigador. Fernando Pessoa foi internado a 26 desse mês, no Hospital de S. Luís dos Franceses, tendo morrido poucos dias depois, a 30 de novembro de 1935. Ao Observador, José Barreto explicou que “Pessoa datava [sempre] os poemas”. “Ele escreveu dezenas de milhares de poemas e 99% estão datados. Muitas vezes não datava os outros textos, em prosa, mas a poesia datava sempre. Este está datado de 22 de novembro, uma semana antes de morrer, e não há nenhum poema que se conheça — a obra poética foi toda estudada — com uma data a seguir.” Isto significa que “The happy sun is shinning” é, “muito possivelmente, o último poema que Pessoa escreveu em qualquer língua”. Não há nenhum no seu espólio com uma data posterior.

Mas o que impressiona em “The happy sun is shinning” é o tom apaixonado com que Pessoa fala da mulher amada, a única coisa que “importa”. “É claramente um poema apaixonado”, salientou José Barreto. “Como eu digo no artigo, estes não são sentimentos que se fantasiem, que se inventem.” Além do mais, é “raríssimo” encontrar versos deste tipo “na obra de um poeta como Pessoa”. “A poesia amorosa, na primeira pessoa, não é vulgar, mas é ainda mais raro um poema em que tão claramente manifesta a sua paixão. Foi isto que levou o Ángel Crespo a dizer que era evidente que Fernando Pessoa estava apaixonado.” Porque, apesar de Pessoa ser geralmente descrito como um poeta racional, não quer dizer que não fosse capaz de se apaixonar perdidamente por alguém.

De acordo com José Barreto, existem passagens nos fragmentos dos diários que Pessoa escreveu por volta dos 20 anos que falam de questões amorosas e do “conflito entre o amor e a obra”, que sempre o preocupou e que acabou por ditar o final do relacionamento com Ofélia Queiroz: “O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existência a Ofelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais à obediência a Mestres que não permitem nem perdoam. Não é necessário que compreenda isto. Basta que me conserve com carinho na sua lembrança, como eu, inalteravelmente, a conservarei na minha”, escreveu o poeta a jovem, a 29 de novembro de 1920, quando terminou a primeira fase do namoro. “Ele achava, desde muito jovem, que tinha uma missão como escritor que era relevante”, disse José Barreto. “Tinha uma grande opinião de si próprio e achava que a vida rotineira, igual à dos outros, seria destrutiva para a sua missão, para a sua obra poética. Escreveu sobre esse conflito, o que já é indicativo de que não era um homem desprovido de sentimentos e incapaz de se apaixonar.”

É que apesar de o autor de Mensagem ter “fama de fingidor”, não quer dizer que fosse exatamente assim. “Adolfo Casais Monteiro chamou-lhe o ‘insincero verídico’, que é uma coisa um bocado contraditória”, afirmou o historiador. “Ele alertou que se deve ter muito cuidado quando se interpreta a poesia a partir da vida de Fernando Pessoa ou ao contrário. Mas a poesia não está desligada da vida. Nunca está. E mais: todos os poetas se apaixonam e escrevem poemas amorosos. Pessoa não foi exceção.”

Apesar de “The happy sun is shinning” ter sido o último poema escrito por Pessoa, não é, contudo, o último escrito atribuído ao poeta. Como se sabe — a história é famosa –, antes de morrer, Fernando Pessoa terá escrito num papel as palavras “I know not what tomorrow will bring”. A última frase dita foi, porém, outra. Como relatou João Gaspar Simões na sua biografia do poeta: “Agonizava, e no meio da sua agonia, repuxando a dobra do lençol, teve, de súbito, uma pausa de estranha inquietação. Abriu os olhos, olhou em roda, e vendo que não via, serenamente, como quem não esquece que os míopes, para ver, precisam de óculos, pediu que lhe dessem as suas lentes: ‘Dá-me os óculos’, murmurou, semicerrando os olhos enevoados. Foram estas as suas últimas palavras”.


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