Poemas de solidão - e partidas . (Teixeira de Pascoaes, in 'Elegias')








Nenhum corpo é isto...
uno e só
Ignorado e coroado em duros timbres.
latejo intenso ferindo os sentidos
onde a saudade é vício.
no ócio a alojamos como fome - imaginação adentro -
Longe além moram os saudosos
- olhos no lugar do tempo
sorriso triste no lugar da lua
Saudade içada ao vento
Bordada alinhada na geometria do poema

E há previsíveis retiros
almas que submergem frias,
Perdidas na raiz da caverna
Tolhidas no susto da dor
Uns procuram-nas alto nas ramagens de ouro.
Outros nas profundezas dos filões pétreos

E eis que só, definhas como água do mar ao sol
petrificada em cristal
Inspiras... Meros aromas de terra e mar
Não falas, mal respiras, suspendeste apenas
Com todo o peso da solidão
Onde o silêncio cai 
e o pensamento voa
Feroz, paciente, acometido, centrífugo...
Firme no vértice do abismo

Camila Carreira


Teixeira de Pascoaes, in 'Elegias'

Ausencia

Lúgubre solidão! Ó noite triste!

Como sinto que falta a tua Imagem

A tudo quanto para mim existe!


Tua bemdita e efémera passagem

No mundo, deu ao mundo em que viveste,

Á nossa bôa e maternal Paisagem,


Um espirito novo mais celeste;

Nova Forma a abraçou e nova Côr

Beijou, sorrindo, o seu perfil agreste!


E ei-la agora tão triste e sem verdor!

Depois da tua morte, regressou

Ao seu velhinho estado anterior.


E esta saudosa casa, onde brilhou

Tua voz num instante sempiterno,

Em negra, intima noite se occultou.


Quando chego á janela, vejo o inverno;

E, á luz da lua, as sombras do arvoredo

Lembram as sombras pálidas do Inferno.


Dos recantos escuros, em segredo,

Nascem Visões saudosas, diluidos

Traços da tua Imagem, arremêdo


Que a Sombra faz, em gestos doloridos,

Do teu Vulto de sol a amanhecer...

A Sombra quer mostrar-se aos meus sentidos...


Mas eu que vejo? A luz escurecer;

O imperfeito, o indeciso que, em nós, deixa

A amargura de olhar e de não vêr...


A voz da minha dôr, da minha queixa,

Em vão, por ti, na fria noite clama!

Dir-se-á que o céu e a terra, tudo fecha


Os ouvidos de pedra! Mas quem ama,

Embora no silencio mais profundo,

Grita por seu amor: é voz de chama!


E eu grito! E encontro apenas sobre o mundo,

Para onde quer que eu olhe, aqui, além,

A tua Ausencia tragica! E no fundo


De mim proprio que vejo? Acaso alguem?

Só vejo a tua Ausencia, a Desventura

Que fez da noite a imagem de tua Mãe!


A tua Ausencia é tudo o que murmura,

E mostra a face triste á luz da aurora,

E se espraia na terra em sombra escura...


Quem traz o outomno ao meu jardim agora?

Quem muda em cinza o fogo do meu lar?

E quem soluça em mim? Quem é que chora?


É a tua Ausencia, Amôr, que vem turbar

Esta alegria etérea, nuvem, asa

De Anjo que, ás vezes, passa em nosso olhar!


O Sol é a tua Ausencia que se abrasa,

A Lua é tua Ausencia enfraquecida...

Da tua Ausencia é feita a minha vida

E os meus versos tambem e a minha casa.


Teixeira de Pascoaes, in 'Elegias'

* Teixeira de Pascoaes, pseudónimo de Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos (Amarante, 8 de novembro de 1877 — 14 de dezembro de 1952). Licenciou-se em Direito em 1901, tendo trabalhado como advogado e, depois, juiz, durante cerca de uma década (atividades que admitiu ter exercido de maneira relutante, uma vez que a sua vocação era a poesia), até se mudar com a família para a Casa de Pascoaes, em Gatão (Amarante), onde se dedicou à gestão das propriedades familiares e à vida literária.

Teixeira de Pascoaes ficou conhecido pela sua apologia da saudade, conceito português com raízes históricas profundas, definível como a ânsia de ter o objeto desejado que se encontra distante e a dor resultante de o não ter consigo. O Saudosismo, porém, foi mais do que a mera cultura de uma emoção, tornando-se também, segundo o autor, a «primeira escola autenticamente portuguesa, essencial, religiosamente portuguesa» e conquistando um lugar na história da literatura e, sobretudo, da poesia nacionais, na transição de Oitocentos para Novecentos. Esta escola, teorizada por Pascoaes, entendia a saudade como um elemento fundamental da identidade lusa que possibilitaria o renascimento da nação face ao desapontamento trazido pela experiência republicana (que não conseguiu resolver alguns problemas socioculturais). A revista «A Águia» (1910-1932), fundada e dirigida por Pascoaes no âmbito do movimento nacionalista “Renascença Portuguesa” («sociedade literária» ativa entre 1912 e 1932), funcionou nos anos iniciais como montra da filosofia do movimento, plasmada em muitos dos trabalhos publicados.

No poema selecionado, “ENCANTAMENTO”, cujos temas centrais considerámos serem o amor e a saudade, o sujeito lírico evoca um tempo passado (notem-se os tempos verbais: «ficava», «sentia», etc.), em que o «tu», figura reiteradamente caracterizada como angelical («a tua doce e angelica Figura», «Tua figura de Anjo radiava»), exerceu uma influência positiva sobre o «eu» e o mundo circundante («Sob os teus pés a terra florescia, / E até meu próprio espírito cantava!»), reforçada não só pelo uso do animismo da terra (pode dizer-se que Pascoaes tinha especial nesta imagem do espírito que fecunda a terra, tendo já referido em 1914, numa conferência, que  «A vida animal não é mais do que a terra onde o espírito embebe as raízes para florir além das nuvens e das estrelas.») e da personificação do espírito do sujeito poético, mas também pela efusão lírica resultante do uso das exclamações e das reticências; curiosamente, toda esta carga positiva parece opor-se à categorização do poema como elegia (deduzível a partir do título da obra em que se insere, «Elegias»), ou seja, uma poesia de cunho triste, pelo que só se poderá adequar pelo facto de se tratar de uma felicidade passada e, portanto, distante. Será relevante sublinhar também a forte componente religiosa que se evidencia ao longo de todo o soneto (note-se que Pascoaes e os saudosistas cultivavam o Panteísmo, corrente filosófica que identifica sinais de presença e de atuação divinas em todos os seres da natureza), denunciada pelas referências às características angelicais do «tu» referidas e, sobretudo, pela nomeação direta de Deus no último verso («Nessas horas divinas, quem diria / A sorte que já Deus te destinava!»), que remete para a boa fortuna, não racionalizada, por que o «tu» teria sido bafejado (poderá o leitor subentender que essa sorte estará relacionada com a emoção experimentada pelo «tu», entendida como uma bênção).

Ao nível estilístico, merece-nos particular destaque a musicalidade desta composição, visto que a seleção e a organização lexicais parecem obedecer a determinados padrões sónicos e rítmicos conducentes a uma aliança entre significante e significado, a qual, por sua vez, resulta numa significação própria, acompanhada de particular expressividade. Constituem os sons nasais um exemplo particularmente significativo deste fenómeno: na primeira quadra, «Quantas», «angélica», «Embebido num», «Num enlevo»; na segunda quadra, «de me encantar», «Deante […] mimosa», «Suavemente sentia-me», «sombra apenas e ternura»; no primeiro terceto, «inocência», «Anjo»; no segundo terceto, «meu cantava», «divinas, quem», «destinava!». Verificamos, face aos exemplos, que os sons nasais vocálicos sonoros (as vogais nasais correspondentes a: /en/, /em/, /an, /om/, /um/) e consonânticos (contínuos e soantes: /m/ e /n/), predominantes no título da composição poética, “ENCANTAMENTO” (/en/an/m/en/), na primeira quadra e, sobretudo, na segunda quadra parecem cobrir o poema com um véu de  melancolia e brandura, que está em sintonia com a mensagem do mesmo, concorrendo para uma estreita relação entre o som e o sentido. Também de notar, ao nível formal, que todos os versos do soneto apresentam rima cruzada (com o esquema rimático ABAB/ABAB/CDC/DCD), o que estabelece entre os versos intervalos regulares que, com o seu paralelismo, cativam o ouvinte.

Em suma, e não esquecendo a temática que preside à nossa série, diremos que a representação do amor veiculada pela composição poética que aqui apresentamos é, sem dúvida, geradora de uma reação positiva no sujeito lírico (sublinhada pela riqueza fónica evidenciada). Tudo isto, porém, com uma importante particularidade: a dita reação reporta-se a experiências passadas – que são, será seguro dizer, aquelas que recordamos com saudade.


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