Poema: Reviver o passado, sem presente. (Análise do poema Futuro de José Saramago)

A vida escreve-se no presente
Mas toda me versa do passado
Vertida em memórias pujantes e estridentes
Derramadas impiedosas na alma
Persistem e assombram como fantasma
Nítidas e pesadas, vincadas
Ofuscam o presente como a tarde que vem e o dia apaga
Fria de luz fumacenta e vagarosa
esforço de sombras a arrastar
Horas sem fim, o passado sempre a chegar
O instante é abalroado
Condenado a nunca singrar
Extinguem-se sorrisos neste Novembro cinza e maduro
Porque o Outubro inevitável
- foi irremediável e duro -
Imutável e tão escuro
Janela que não abre nem dá sóis
E por mais que supere todas as alvoradas –
Não alcanço luz
Agrilhoada no peso cego das memórias
Vício que não me liberta do rigor,
Olhos presos lá atrás na dor
Fogueira viva onde regresso
a queimar quimeras como pétalas secas
Sou em mim meu único exílio
Em que o tempo se escreve depois
Vou por aí que nem sombras
A somar êxtases na orla das palavras que redijo vã


Camila Carreira 


Poemas famosos 

  

Passado, Presente, Futuro
José Saramago


Eu fui. Mas o que fui já me não lembra:
Mil camadas de pó disfarçam, véus,
Estes quarenta rostos desiguais.
Tão marcados de tempo e macaréus.

Eu sou. Mas o que sou tão pouco é:
Rã fugida do charco, que saltou,
E no salto que deu, quanto podia,
O ar dum outro mundo a rebentou.

Falta ver, se é que falta, o que serei:
Um rosto recomposto antes do fim,
Um canto de batráquio, mesmo rouco,
Uma vida que corra assim-assim.

Na primeira obra poética de José Saramago descobre-se uma poesia de liberdade, de fraternidade e de luta. Uma luta disfarçada, por dentro das palavras. Pelo interior labiríntico de respiração que habitam todos estes poemas, publicados pela primeira vez em 1966. Digamos que eram os «poemas possíveis» da altura, quando a censura espiava a alma dos escritores. E no entanto, as convicções profundas de Saramago já são bem visíveis em poemas como «Criação»: «Deus não existe ainda, nem sei quando / Sequer o esboço, a cor se afirmará / No desenho confuso da passagem / De gerações inúmeras nesta esfera. / Nenhum gesto se perde, nenhum traço, / Que o sentido da vida é este só: / Fazer da Terra um Deus que nos mereça, / E dar ao Universo o Deus que espera.»
– Diário de Notícias, 9 de outubro de 1998 –

ARTE POÉTICA
Vem de quê o poema? De quanto serve
A traçar a esquadria da semente:
Flor ou erva, floresta e fruto.
Mas avançar um pé não é fazer jornada,
Nem pintura será a cor que não se inscreve
Em acerto rigoroso e harmonia.
Amor, se o há, com pouco se conforma
Se, por lazeres de alma acompanhada,
Do corpo lhe bastar a presciência.

Não se esquece o poema, não se adia,
Se o corpo da palavra for moldado
Em ritmo, segurança e consciência.
– José Saramago, em “Os Poemas Possíveis”. 6ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1997.


PROCESSO
As palavras mais simples, mais comuns,
As de trazer por casa e dar de troco,
Em língua doutro mundo se convertem:
Basta que, de sol, os olhos do poeta,
Rasando, as iluminem.
– José Saramago, em “Os Poemas Possíveis”. 6ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1997

Sem comentários:

Enviar um comentário