Bebo página a página a vida boquiaberta de ternura

camila carreira poesia portuguesa poemas de amor

PROFUSA E DEVOTA

Hoje trago-te versos íntimos – 
ondeiam-me soltos na alma 
Centelhas a colorir-me vidraças
Sorrio da felicidade quando fica simples 
Rede serena que pesca sonhos de amor 
Neste imprevisto mar onde me embalo
No aroma do quarto em que te beijo
No leito em que te sinto… 
Com a audácia crua dos amantes

Claustro que enclausura como em abraço 
Cerco-me de poemas em que germino
Amo em todas letras abstractas
Em todos os verbos das horas profusas
Em todas as noites alvas e confusas
Em madrugadas adjectivas de insónia
Amo sempre tanto e sem pressa 
E nós tão singulares aqui na memória
Tão fora desse cenário que apedreja 
Caídos em rituais de riso e olhares
Caprichosos com ênfase e em glória 
Com o cheiro a café no sulco das palavras

E o que escrevo é amor devoto
Entregue sem ressalvas nem condição 
Porque na hora que a ti regresso    
Bebo página a página a vida boquiaberta de ternura 
Todos os tempos são dias, nossos e brandos
mestria pacata do amor 
Proclamado na serenidade vibrante do olhar

Não quero colidir na frieza duma fraga 
Desabitada… inábil para acolher viva´alma  
Porque de repente... Tudo fica estéril e frio – 
já me não semeio nem germino – 
definho… e tudo me finda
sobram-me poemas e líquenes
Encrostados em almas e nos troncos   

Camila Carreira

Análise do Poema de Alberto Caeiro - XXIII - O meu olhar azul como o céu


O meu olhar azul como o céu
É calmo como água ao sol.
É assim, azul sereno,
Porque não interroga nem se espanta...
Se eu interrogasse e me espantasse
Não nasciam flores novas nos prados
Nem mudaria qualquer coisa no sol de modo a ele ficar mais belo...
(Mesmo se nascessem flores novas no prado
E se o sol mudasse para mais belo,
Eu sentiria menos flores no prado
E achava mais feio o sol...
Porque tudo é como é e assim é que é,
E eu aceito, e nem agradeço,
Para não parecer que penso nisso…)

s.d.
“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).  - 49.


Análise poema XXIII – Alberto Caeiro

Neste poema está evidente a clareza e objetividade com que Caeiro vê a
realidade, em especial a natureza.
O poeta inicia o poema ao referir o seu “olhar azul” já antes descrito na carta
de Pessoa a Casais Monteiro. Este olhar, “azul como o céu”, é equiparado à calma da água e do sol. Os seus olhos, ao serem da mesma cor do céu estabelecem uma ligação direta de Caeiro com a essência da natureza, permitindo-nos afirmar que é no ato de ver que se capta a pureza, a naturalidade e a perfeição da vida. Assim, na visão de Caeiro encontramos a natureza fruída na sua essência.
Nos dois últimos versos da primeira estrofe, o sujeito poético justifica o
raciocínio anterior, ou seja, o seu olhar é “azul e calmo/ porque não interroga nem se espanta”. Assim, nestes versos, apresenta-se o assunto do poema: as coisas são o que são e nada mais.
Na segunda estrofe, introduzida pela conjunção subordinativa adverbial
condicional “se”, o sujeito lírico coloca a hipótese de se interrogar sobre as coisas (“ Se eu interrogasse e me espantasse”). Desta suposição, afirma que "...não interroga nem se espanta...", pois se "interrogasse" se "espantasse", "Não nasciam flores novas nos prados" nem o sol ficava mais belo. Deste modo, a reflexão a especulação, a intelectualização e a emoção dissimulariam a espontaneidade da natureza. A Caeiro, enquanto poeta do real objetivo, não importa saber o que é a natureza, nem questioná-la, mas amá-la por ela ser ela mesma. Apenas através da ausência de abstrações, da formulação de conceitos é que é possível ver com o “olhar azul”. Ver é compreender.
Ao longo desta estrofe, verifica-se a presença de uma enumeração polissindética pela repetição da conjunção coordenativa copulativa “e” (“e me espantasse"; "E se o sol mudasse"; “ E achava mais feio o sol…”). A sua utilização excessiva afirma-se como uma marca da simplicidade e espontaneidade linguística do poeta e, também, como uma marca da oralidade. Alberto Caeiro utiliza ainda o processo tautológico, ou seja, a explicitação de uma ideia com a repetição da mesma
ideia - Porque tudo é como é e assim é que é,".
Nos dois últimos versos, o sujeito lírico reafirma a sua aceitação do mundo que
o rodeia sem questionar a sua existência. Para ele, o contacto imediato com a
realidade, a rejeição do pensamento e da abstração são sinónimos de conhecimento.
Pensar é, portanto, ser inimigo da natureza. Esta deve ser admirada, contemplada e
não pensada e questionada. Para Caeiro, questionar a natureza, seria questionar a nós próprios pois nós mesmos somos uma parte constituinte desse todo.
Porém, esta atitude aparentemente simples e ingénua não é instintiva, mas sim
fruto de uma reflexão que o leva a rejeitar o pensamento. Logo, esta rejeição é, 
paradoxalmente, o resultado de uma análise racional que o faz preferir aceder ao
conhecimento pelo contacto direto com a realidade. Daí que ver seja conhecer.
Deste modo, pela minha interpretação, sugiro que o poema seja divido em 3
partes:
- 1ª, constituída pela primeira estrofe onde o poeta apresenta a sua
ligação direta à natureza;
- 2ª parte, do verso 5 ao 11, onde está presente a perceção de que
qualquer eventual raciocínio em nada altera o curso da natureza;
- por último, a 3ª parte, os três últimos versos, que compõem a
conclusão introduzida por uma conjunção subordinativa causal(porque) onde o sujeito poético explica a razão que o leva a aceitar a natureza como ela é, deixando
transparecer que essa visão simples é resultado de uma opção consciente. Afirma-se,  assim, Caeiro como o poeta simples de espécie complicada que se esforça por
aparentar uma visão ingénua e pura real.


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