Poema do Amor cósmico - Análise do pastor poeta Alberto Caeiro

quadras de amor, versos e poemas, paixão cósmica
todas as citações falam de nós
- torso com muitas alíneas
onde entalhamos a vida 
lavrada de arrepios de amor 
com bocas e mãos em harmonia
subitamente nós no mesmo assombro
e o amor sopro sempre tão original
Fulcral

Existe é força cósmica em mim.
Braço imenso, intenso e abstracto
Olhos em labareda de almas quentes
Beijos meteoritos que atravessam vazios
Incendeiam como relâmpagos, frios
Ininteligíveis velozes
Fixo-me nas estrelas para te chegar
Sentir-te no sopro que és, de vento
Escutar-te nas vagas que és, de mar
Esboçar-te no infindo que és lunar
Serei pássaro ou força esvoaçante
Que te sonha sobrevoar.
És excesso de mar nesta enseada
Colo de virgem apaixonada
Farta inchada 
Nem o espaço nem o tempo
Te apartam de mim
Sinto-te perene a ficar.
Como a lua com o luar
Ou as ondas com o mar
impossíveis de separar...
És a ilha deserta quando naufrago
És universo, sem princípio nem fim,
Amplo azul... para mim 


** Camila Carreira***

Momentos de poesia e cultura 


Análise do pastor Caeiro 

 A objetividade
Problematizar a relação entre o sentir e o pensar é uma característica constante da poesia de
Pessoa em seus diversos heterónimos, que o verso “O que em mim sente `stá pensando”, do poema “Ela canta, pobre ceifeira”, sinaliza com clareza.
Na persona de Alberto Caeiro, há o projeto, conforme o dizer de Ricardo Reis, de uma objetividade quase inconcebível, em que “Vê as coisas apenas com os olhos, não com a mente” (PESSOA,
1986, p. 129). Essa objetividade é construída com um rigor filosófico a toda prova de crítica, conforme parecer do discípulo heterónimo.
Nestes poemas aparentemente tão simples, o crítico, se se dispõe a uma análise
cuidada, hora a hora se encontra defronte de elementos cada vez mais inesperados, cada vez mais complexos. Tomando por axiomático aquilo que, desde logo, o impressiona, a naturalidade e espontaneidade dos poemas de Caeiro, pasma de verificar que eles são, ao mesmo tempo, rigorosamente unificados por um pensamento filosófico que não só os coordena e concatena, mas que, ainda mais, prevê objeções, antevê críticas, explica defeitos por uma integração deles na substância espiritual da obra (PESSOA, 1986, p. 129).
Consoante tal análise, José Gil observa: “A sensação em Caeiro detém-se nos sentidos”. Daí caber perguntar: “Poderemos sentir sem pensar?” (GIL, s.d., p.120). Vemos que a resposta, em Caeiro, está na negação de uma interiorização das sensações num sujeito do pensamento. Busca produzir, assim, uma metafísica em que sentir-pensar-dizer não são atravessados por um jogo de representação,
em que não estão separados por um corredor que os duplica uns nos outros, conforme podemos ver no poema XLVI de O Guardador de Rebanhos (G.R):

Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à ideia
E não precisar dum corredor
Do pensamento para as palavras.

O sentido do amor na “metafísica do corpo” de Alberto Caeiro 280

Nessa percepção sem intermediação, então, cabe afirmar que os pensamentos são sensações, numa filosofia do corpo como requereriam Merleau-Ponty, conforme Arendt (2000, p.27), ou Espinoza, conforme Deleuze (fr. 2003, p. 28; ou port. s.d., p. 25-26),: 
Espinoza propõe aos filósofos um novo modelo: o corpo. Propõe-lhes instituir o
corpo como modelo: “Não se sabe o que pode o corpo...” Esta declaração de ignorância é uma provocação: nós falamos da consciência e dos seus decretos, da
vontade e dos seus efeitos, dos mil meios de mover o corpo, de dominar o corpo e as paixões – mas não sabemos realmente o que pode um corpo. Tagarelamos à falta de o saber. Como dirá Nietzsche, espantamo-nos diante da consciência, mas “o que é surpreendente, é acima de tudo, o corpo”.
Pois no corpo, nos sentidos se resolvem todas as faculdades de apreensão da realidade, como apresenta Caeiro no poema IX (G.R.):

Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.

Pensar, essa é uma percepção que nos flagra numa obviedade constantemente negada, numa daquelas “falácias metafísicas” de que nos fala Arendt. É no corpo e com o corpo, numa dupla implicação de que pensamos com os sentidos, que os olhos, os ouvidos, a boca, o nariz, a pele contactam o mundo, e de que, por mais que assim todo idealismo o queira, não nos desfazemos do nosso corpo ao pensar. Contrário a toda tradição filosófica, o poeta afirma os seus pensamentos serem sensações.
Nesse poema, como é constante em Caeiro, há uma poesia sem metáforas2, mas o processo de exploração das homonímias e das metonímias faz a significação das palavras passarem sem intermediação de um campo semântico para outro. Num equivalente ao deslizamento inicial do rebanho, enquanto coletivo de animais de pasto, para o pensamento e deste para as sensações, em que vemos
que ele é verdadeiramente um pastor de suas sensações, algumas palavras do poema deslizam dum campo semântico para outro. Penso (v.4) e pensar (v.7), que inicialmente estão associadas ao campo semântico da reflexão, podem simultaneamente estar associadas ao campo da avaliação, da medição, da
mesma forma como sentido (v.8) vibra entre o campo semântico da significação e da sensação. Por um efeito metonímico, por sua vez, olhos, ouvidos, mãos, pés, nariz, boca deslizam do campo semântico da anatomia para o das sensações e vice-versa. Se tais palavras, desse modo, acabam por ter um estatuto polissémico, tal polissemia acaba reafirmando a univocidade da relação entre sentir-pensar-dizer.

2 comentários:

  1. & que a sua -[senhora poetisa Camila Carreira]- veia poética continue a ser entre os + as amantes da nossa querida/estimada Língua Portuguesa encontrada vezes sem-fim.

    Comentário inspirado no poeta/escritor/filósofo sito no seguinte website:

    www.miltoncoelho.weebly.com

    Para si (senhora poetisa Camila Carreira); para os seus leitores + para as suas leitoras:

    Bem haja/hajam!

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  2. Este poema é cósmico e como o barroco, rico em ornamentos.
    Parabéns Camila Carreira.
    Paulo Jorge

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