Poema eu vivi morrendo por ti ( Reflexão comparada sobre Kierkegaard e Pessoa)

camila carreira, poemas de dor, poetisa portuguesa, versos de amorNas paredes do teu sonho infernal
Desenhei os meus caminhos
Julgando eu que serias leal
Mas eram frágeis teus pergaminhos
tudo fizeste para me sabotar
Lamento tais intentos mesquinhos

Com fragmentos de choro no olhar...
Que fita toldado o distante luar
Da noite funda onde fui findar
Com sonhos meus abortados
Esboçados em traiçoeiros torvelinhos

Solto brados e prantos desesperados
Como passarinhos caídos dos ninhos
Adivinhando o quanto estão condenados
E como eles também eu compreendo
Dolorosamente tarde o percebi
Eu apenas vivi morrendo
E morri vivendo por ti

**** CAMILA CARREIRA ***




Momentos de cultura... 

Reflexão comparada sobre Kierkegaard e Pessoa


Apesar de Jacques Colette afirmar no início do posfácio a este livro que um estudo comparado da obra de Kierkegaard e da de Pessoa pode parecer paradoxal e inesperado, uma tal impressão poderá talvez ocorrer em meio francófono, mas a Bibliografia passiva, selectiva e temática recentemente revista e republicada por José Blanco (Lisboa: Assírio & Alvim, 2008) permite ver como há antecedentes em número interessante ao estudo de Bellaiche-Zacharie na comparação entre aspectos da poética pessoana e da obra de Kierkegaard. 
Entretanto, o livro em análise é possivelmente a proposta mais desenvolvida de reflexão cruzada sobre os dois autores e, dada a complexidade da matéria abordada, tem o sabor de leituras instigantes a que se seguirão outras, mais ou menos alternativas. A difusão crescente da obra de Fernando Pessoa em círculos de âmbito filosófico, dentro e fora de Portugal, bem como a tradução portuguesa da obra de Kierkegaard, promovida pelo Centro de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tornam muito plausível que esta senda de reflexão comparada continue a ser praticada nos próximos anos.
Na ausência de um vínculo empírico entre os dois autores estudados – Kierkegaard morre antes de Pessoa nascer, este não parece ter lido alguma obra daquele – o quadro conceptual de que Bellaiche-Zacharie parte podia ser exterior  ao seu objecto de reflexão, mas não é. O que se propõe em Pensée et existence selon Pessoa et Kierkegaard é uma revisitação de aspectos da obra do escritor português e do filósofo dinamarquês à luz de certas noções-chave na produção deste último.
De novo, um programa com estas características não é inovador em absoluto, pois, por exemplo, Eduardo Lourenço, em Fernando, rei da nossa Baviera (reed. Lisboa: Gradiva, 2008), vê os três heterónimos canónicos pessoanos à luz dos três estados existenciais descritos por Kierkegaard. 
Por ventura a questão fundamental à partida é a de reconhecer propriedade na semelhança detectada por Bellaiche-Zacharie nos seus dois objectos de atenção. 
Se a semelhança for de âmbito excessivamente amplo, não há um vínculo interpretativo convincente; se a semelhança emergir à custa da secundarização violenta de certos aspectos diferenciais nas obras de Pessoa e Kierkegaard, a aproximação resultará forçada. Ora, tendo como pano de fundo o tratamento da  relação entre pensamento e existência e entendida a arte literária como um modo possível de formulação de problemas de natureza filosófica, Bellaiche-Zacharie assinala o que poderíamos chamar alguns pontos de contacto de enquadramento na reflexão comparada sobre Kierkegaard e Pessoa.
Um destes pontos de contacto consiste no dado de ambos os autores terem projectado outras entidades associadas sob diferentes formas à responsabilidade da escrita de diversos dos seus textos. Uma forma tendencialmente pseudonímica no caso de Kierkegaard e heteronímica no que diz respeito a Pessoa. Por isso, Zacharie-Bellaiche valoriza a heteronímia como um eixo estrutural no percurso literário do escritor português, apesar de ela não ter tido sempre o mesmo peso (não vou tão longe como Robert Bréchon, que, no prefácio, resume o período de vigência heteronímica aos quatro anos que vão de 1914 a 1917). De passagem, é curioso verificar que o sistema heteronímico concebido por Pessoa é por ele tratado, na célebre carta sobre os heterónimos dirigida a Adolfo Casais Monteiro, como resultado da criação de uma “coterie inexistente”. E Kierkegaard, por seu lado, afirmara no Ponto de vista explicativo (cf. Pensée et existence, p. 21) que a figura do autor pseudonímico visa eliminar o efeito da sua própria pessoa através da organização de uma coterie. O jogo de projecções e reflexos autorais pode assumir  configurações como a de que fala Kierkegaard em Uma primeira e última explicação, ao assinalar que ele, enquanto sujeito, constitui uma síntese onde ao mesmo tempo é o secretário e o autor dialecticamente reduplicado do autor ou dos autores (cf. p. 28). Face à propriedade deste ponto de contacto, é pouco relevante concordar ou não com Bellaiche-Zacharie, quando diz que Kierkegaard estabelece a pseudonímia como um género novo. É igualmente pouco interessante procurar evidenciar que o jogo heteronímico, com uma medida de inovação que não se pode negar na cena literária portuguesa e não só, entronca numa tradição textual que remonta, pelo menos, à cisão do sujeito de que falam algumas epístolas paulinas. 
Importa, isso sim, reconhecer a pertinência do nexo global que assim se firma entre os dois autores, embora fosse interessante perceber melhor como procedem pseudonímia e heteronímia do mesmo género (p. 20). De acordo com a teoria clássica dos géneros, o leitor assume que Bellaiche-Zacharie vincula ambas ao género dramático, mas o livro deixa esta matéria em aberto. Fica, de qualquer modo, claro que quer a pseudonímia quer a heteronímia são instrumentos nas mãos de Kierkegaard e de Pessoa e que alguns destes instrumentos apresentam contornos semelhantes. Por exemplo, a banalidade partilhável é imagem de marca no sujeito do Post-Scriptum, Johannes Climacus, nascido em Copenhaga e homem comum, assim como, no caso do Livro do Desassossego, no semi-heterónimo Bernardo Soares, trivial ajudante de guarda-livros em Lisboa.
Por detrás dos pontos de contacto de enquadramento, Bellaiche-Zacharie distingue frequentemente a esfera de actuação de Kierkegaard (a ética) da de Pessoa (a estética), o que não o impede de assinalar uma finalidade alegadamente  comum ao filósofo dinamarquês e ao escritor português. Ambos estariam empenhados na regeneração do indivíduo (p. 106). Embora a poesia de Caeiro e a poesia de Campos, que são especialmente tomadas em consideração no livro em análise, sejam textos à thèse, creio que ideais regenerativos podem mais verosimilmente ser encontrados em certa faceta ensaística da produção pessoana e na Mensagem. Seja como for, um certo tipo de regeneração, tratado ética ou esteticamente, pode ser activado por meio dos instrumentos pseudonímico e heteronímico. E são sobretudo as poéticas dos heterónimos Alberto Caeiro e Álvaro de Campos que são objecto de reflexão por intermédio de um quadro conceptual kierkegaardiano onde adquirem protoganismo a primitividade e depois a reflexão e a repetição, como logo no posfácio observa Jacques Colette (p. 110).
Segundo Zacharie-Bellaiche, é a noção de primitividade, certamente devido ao seu potencial regenerativo, que funciona como eixo da pseudonímia e da heteronímia (p. 47). A primitividade, como é sabido, não se encontra para Kiergegaard dependente de uma atitude inocente e pré-reflexiva. Antes se apoia na reacção contra a aceitação acrítica das convenções e das práticas instaladas comuns, por isso favorecendo a afirmação do que é irredutível em cada indivíduo.
A via do despojamento (das crenças convencionais) que por este meio é desenvolvida implica uma desaprendizagem que Zacharie-Bellaiche reconhece também na poética de Caeiro. Tal desaprendizagem pode ser representada como o apagamento metafórico das sucessivas camadas de escrita que foram sendo impostas sobre uma tábua. Uma vez terminado este processo, o entendimento humano fica livre das falsidades que se foram acumulando e reconquista a sua dimensão de tabula rasa de modo a poder apreender verdadeiramente o que o rodeia (cf. p. 28). Também faz parte de um programa deliberado que a poesia de Caeiro tenha um certo ar de recuperação arcádica e que a sua poética seja de índole tautológica. A tautologia de Caeiro contribui para fazer com que as coisas
apareçam pela primeira vez, libertadas da espessura ontológica e metafísica que lhes foi sendo acrescentada, mas – diferentemente do que sucede em Kierkegaard – é indiferente à questão do pecado (p. 56). 
Se os fins que Kierkegaard e Pessoa perseguem não são totalmente coincidentes, os meios também diferem. Bellaiche-Zacharie segue a linhagem interpretativa daqueles que reconhecem na poesia de Caeiro a tentativa de objectivação do próprio sujeito, para tanto referindo a técnica de reduplicação (do olhar), a qual impede a intromissão do pensamento e permite que o sujeito possa ser visto por si próprio (p. 62). Sucede que pouco antes, a propósito do contraste entre os meios usados pelos dois autores, a reduplicação (“redoublement”) tinha sido colocada ao serviço da estratégia própria de Kierkegaard (a reafirmação do sujeito como eu), distintamente da estratégia assumida por Caeiro, baseada no  desdobramento (“dédoublement”), que visa a sua objectivação como sujeito percepcionado(p. 57).
Independentemente de se atingir este fim por um meio ou por outro, como a primitividade não consiste num simples regresso a um estado natural de beatitude mítica, antes corresponde à conquista de uma “segunda imediaticidade” (p. 73), a poética de Caeiro incorpora traços desta operação que em muito excedem o empirismo minimal repetitivo. Por exemplo, o início do “Oitavo poema de O Guardador de Rebanhos” sugere que a desaprendizagem da religião tem a alta definição que a tecnologia permite (a revelação de Cristo experimentada pelo sujeito deve menos à Igreja do que ao simile com o processo de produção de uma fotografia). Estes traços, que escapam ao retrato de Caeiro reduzido à proclamação do princípio de identidade (“E a flor é apenas flor”, poema XL do “Guardador de Rebanhos”), estão previstos desde o início do ciclo: “Eu nunca guardei rebanhos, |Mas é como se os guardasse” (as citações do “Guardador” provêm de Ficcões do Interlúdio. 1914-1915, ed. Fernando Cabral Martins, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998).
Nesta medida, a busca do acto de existir na sua inocência primeira (p. 46) não anda desligada de um excesso de pensamento, que se manifesta com frequência por detrás da exaltação sensacionista em Campos (“por detraz de sentir penso”, diz-se em “A Passagem das Horas ou Walt Whitman”), mas também já em Caeiro. Aliás, se é compreensível que a figura de Ricardo Reis esteja ausente na prática do livro de Bellaiche-Zacharie, a fronteira conceptual proposta no tratamento de Caeiro (ligado à primitividade) e de Campos (analisado sob o par reminiscência/repetição) remete para segundo plano o que liga os dois heterónimos. 
Com efeito, a primitividade poderia ser explorada a partir de enunciados como o dos vv.77-79 da “Saudação a Walt Whitman”: “D’aqui pra fora, politicos, literatos, | Comerciantes, pacatos, policia, meretrizes, souteneurs, | Tudo isso é a letra que mata, não o espirito que dá a vida”, versos onde o programa de expulsão se articula com o recurso a 2 Coríntios 3:6 num intento de desaprendizagem a que Caeiro não é alheio (as citações de Campos são retiradas de Poemas de Álvaro de Campos, ed. Cleonice Berardinelli, Lisboa: INCM, 1990).
No entanto, por causa do lugar concedido na sua poesia à memória de acontecimentos passados, os textos de Campos lidos neste livro servem sobretudo para uma reflexão dinamizada pelas noções de reminiscência e repetição kierkegaardianas. Para o filósofo dinamarquês aquela noção é fundamental no domínio estético, enquanto esta outra tem uma dimensão ética. A este respeito, Bellaiche-Zacharie observa bem como a poética de Campos, devedora da ideia estóica de simpatia universal, procura estabelecer nexos de contiguidade entre todas as entidades: “Não quero intervalos no mundo!” (Saudação a Walt Whitman”, v. 251 (p. 82). Os intervalos, entendidos no espaço, mas também no tempo, seriam preenchidos por Campos através da reminiscência, uma estratégia regressiva que Kierkegaard desconsidera, pois a eternidade deveria ser procurada  prospectivamente (p.75). Para Bellaiche-Zacharie, em vez de, cumprindo o sacrificium intellectus, efectuar a reduplicação projectiva da imitação de Cristo, Campos, ao procurar o passado absoluto, ficaria limitado pela reminiscência paralisante do passado histórico e biográfico (p. 77 – daqui o predomínio de representações de imobilidade, na ressaca dos momentos de exaltação das grandes odes). Nestes termos, a repetição projectiva em Pessoa seria uma impossibilidade  apenas amenizada pela memória da infância, no plano individual, ou da História, no plano colectivo, mas sem remissão.
Podendo outras formas de repetição, designadamente as da imitatio machinae, ser consideradas na poesia de Campos, o conceito de reduplicação talvez consinta uma via de sentido que Bellaiche-Zacharie não explora. A reduplicação manifesta-se para Kierkegaard quando a reconciliação entre ser e dizer tem lugar de tal maneira que não só o que se diz é duplicado no ser como esta duplicação é reduplicada na própria enunciação (cf. Christopher A. P. Nelson, “Author-activity as an existential expression of neighbor-love: Kierkegaard’s response to Plato”, International Kierkegaard commentary, vol. 22, “The point of view”, Macon: Mercer University Press, 2010, p. 183). Em Pensée et existence (p. 97), também porque as questões de enunciado se sobrepõem às da enunciação, disforiza-se a lição aprendida em Walt Whitman (“Saudação a Walt Whitman”, vv.59-60) – “Nos teus versos, a certa altura não sei se leio ou se vivo, | Não sei se o meu logar real é no mundo ou nos teus versos,”. Ora, enquanto Bellaiche-Zacharie destaca o que há aqui de insucesso (“metamorfose abortada”), a leitura, entre outros, do v. 25 da “Passagem das Horas”: “Eu, que tantas vezes me sinto tão real como uma metaphora,” (p. 104), pode ser visto como um movimento projectivo na direcção da textualização (que tem entre outros corolários o conspícuo reconhecimento “A minha pátria é a língua portuguesa”) e da salvação pela literatura.

Alain Bellaiche-Zacharie (2012). Pensée et existence selon Pessoa et Kierkegaard. Louvain: UCL – Presses Universitaires de Louvain. 


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