Capturas meu espírito já débil de cansaço
E soltas-te em palavras saciando o meu espaço
Renascendo em melodias lavradas em compasso
É vão resistir aos sentidos que em mim despertas
Pois é nas almas tristes, secretamente flageladas
Que as palavras irrompem, como feridas abertas
E soltam emoções, em torrentes desgovernadas
Como nessas noites negras de chuvas, desnaturadas
Alvoroços da alma desprendidos em enxurradas
Crispo-me quero encarcerar os meus demónios
Que líquidos fluem sem nada os poder conter
Alastram-se no labirinto dos meus neurónios
Sinto-os cáusticos dentro de mim a corroer
Poema é logro seja ele doce ou amargurado
É mero cicerone amplificador da minha dor
Instrumento e servo de demónio dominador
Que me expõe e consome, maldito esconjurado
Que gelam o sol mesmo em universos distantes
Rendida escrevo-os exibindo a ousadia que me resta
Espreito escapo e faço da poesia a minha breve festa
**** Camila Carreira ****
Momentos de cultura...
Fernando Pessoa
Lenta e quieta a sombra vasta
Lenta e quieta a sombra vastaCobre o que vejo menos já.
Pouco somos, pouco nos basta.
O mundo tira o que nos dá.
Que nos contente o pouco que há.
A noite, vindo corno nada,
Lembra-me quem deixei de ser,
A curva anónima da estrada
Faz-me lembrar, faz-me esquecer,
Faz-me ter pena e ter de a ter.
Ó largos campos já cinzentos
Na noite, para além de mim,
Vou amanhã meus pensamentos
Enterrar onde estais assim.
Vou ter aí sossego e fim.
Poesia! Nada! A hora desce
Sem qualidade ou emoção.
Meu coração o que é que esquece?
Se é o que eu sinto que foi vão,
Porque me dói o coração?
17-11-1930 Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). - 125.
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