Poema Antes tu dúbio amor


Ai esta tristura entranhada que me prende
camila carreira, poesia portuguesa, poemas de amor cinzasNuma solitude vasta que me transcende
Como asas amplas de negro infinito,
E vácuos que sufocam o que grito
Quis tudo como o moribundo aflito
Amar, arder, desejar como o proscrito
Entreguei-me acesa cega e desesperada
Ao beijo que me salvou... inesperada
A incerto amor de lucidez inapropriada
Acreditei que a má sorte me olvidava
E por fim senti a dor a ser sedada
Embriaguei-me na turva ilusão
Senti-me resgatada dos meus medos
Dos meus becos negros e degredos
O beijo esquartejou de luz a solidão
Arrancou-me brusca e piedosamente
Do meu caminho fatídico e finito
Trilho insípido e seguro
Mas sempre, sempre tão duro.
Exausta de me saber ali
E se só no teu beijo existi
Decidi perder-me em ti.
Antes tu meu dúbio amor
Que a firmeza da eterna dor.

**** Camila Carreira ***  

Momentos de cultura... 


Bernardo Soares
Durei horas incógnitas, momentos sucessivos sem relação,


Durei horas incógnitas, momentos sucessivos sem relação, no passeio em que fui, de noite, à beira sozinha do mar. Todos os pensamentos, que têm feito viver homens, todas as emoções, que os homens têm deixado de viver, passaram por minha mente, como um resumo escuro da história, nessa minha meditação andada à beira-mar.

Sofri em mim, comigo, as aspirações de todas as eras, e comigo passearam, à beira ouvida do mar, os desassossegos de todos os tempos. O que os homens quiseram e não fizeram, o que mataram fazendo-o, o que as almas foram e ninguém disse — de tudo isto se formou a alma sensível com que passeei de noite à beira-mar. E o que os amantes estranharam no outro amante, o que a mulher ocultou sempre ao marido de quem é, o que a mãe pensa do filho que não teve, o que teve forma só num sorriso ou numa oportunidade, num tempo que não foi esse ou numa emoção que falta — tudo isso, no meu passeio à beira-mar, foi comigo e voltou comigo, e as ondas estorciam magnamente o acompanhamento que me fazia dormi-lo.

Somos quem não somos, e a vida é pronta e triste. O som das ondas à noite é um som da noite; e quantos o ouviram na própria alma, como a esperança constante que se desfaz no escuro com um som surdo de espuma funda! Que lágrimas choraram os que obtiveram, que lágrimas perderam os que conseguiram! E tudo isto, no passeio à beira-mar, se me tornou o segredo da noite e da confidência do abismo. Quantos somos! Quantos nos enganamos! Que mares soam em nós, na noite de sermos, pelas praias que nos sentimos nos alagamentos da emoção!

Aquilo que se perdeu, aquilo que se deveria ter querido, aquilo que se obteve e satisfez por erro, o que amámos e perdemos e, depois de perder, vimos, amando por tê-lo perdido, que o não havíamos amado; o que julgávamos que pensávamos quando sentíamos; o que era uma memória e críamos que era uma emoção; e o mar todo, vindo lá, rumoroso e fresco, do grande fundo de toda a noite, a estuar fino na praia, no decurso nocturno do meu passeio à beira-mar...

Quem sabe sequer o que pensa ou ,o que deseja? Quem sabe o que é para si-mesmo? Quantas coisas a música sugere e nos sabe bem que não possam ser! Quantas a noite recorda e choramos e não foram nunca!

Como uma voz solta da paz deitada ao comprido, a enrolação da onda estoira e esfria e há um salivar audível pela praia invisível fora.
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Quanto morro se sinto por tudo! Quanto sinto se assim vagueio, incorpóreo e humano, com o coração parado como uma praia, e todo o mar de tudo, na noite em que vivemos, batendo alto, chasco, e esfria-se, no meu eterno passeio nocturno à beira-mar!
18-5-1930Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.  - 285."Fase confessional", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol II. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.

1 comentário:

  1. Encontrei o teu MEL...
    naquele dia..bem ali nos versos...
    de tua Poesia.

    Te inventei pra mim...
    Lendo as tuas poesias...

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