Poema dor desmedida

Despojada de mim

Procuro-me num labirinto tortuoso sem fim,
camila carreira, poetisa portuguesa, imagens e poemas, versos amor
O tempo corre… apressa-me e cansa-me
As forças esvaem-se numa torrente frenética
E não encontro forma de a estancar
Definho eu sei,
Ofereci a minha existência a um fantasma
Que, fria e habilmente, a soube aniquilar
Aliciou-me para o limbo sem me rogar
E evaporou-se na penumbra d´um luar
Na cobardia silenciosa rudimentar
Alguém que nunca tive audácia de magoar.
Agora, em mim, flui desmedida dor…
E avisto-me, remota ténue como uma aparição
Débil, diluída e só além na escuridão
Incorpórea na sombra medonha de ninguém
Numa noite fria, sem estrelas nem luar
Sou um mero espectro… vago e disforme
Silhueta de árvore retorcida irreal
Dizimada, dissecada e prestes a tombar
Cruelmente privada da luz de viver
Longe do fulgor do sol que me furtaram
Sucumbi, eu sei… lutei ao lado do inimigo
Agora…
Frágil, moribunda vencida pelas possantes emoções
Agastada pela intensa raiva de mim mesma
Lamento num suspiro largo e languido:
-Porque me deixei aniquilar…?
-Como me posso perdoar?

*** Camila Carreira ***

Momentos de cultura e outras curiosidades poéticas... 

Bernardo Soares
Como uma esperança negra, qualquer coisa de mais antecipador...


Como uma esperança negra, qualquer coisa de mais antecipador pairou: a mesma chuva pareceu intimidar-se; um negrume surdo calou-se sobre o ambiente. E súbito, como um grito, um formidável dia estilhaçou-se. Uma luz de inferno frio visitara o conteúdo de tudo, e enchera os cérebros e os recantos. Tudo pasmou. Um peso caiu de tudo porque o golpe passara. A chuva triste era alegre com o seu ruído bruto e humilde. Sem querer, o coração sentia-se e pensar era um estonteamento. Uma vaga religião formava-se no escritório. Ninguém estava quem era, e o patrão Vasques apareceu à porta do gabinete para pensar em dizer qualquer coisa. O Moreira sorriu, tendo ainda nos arredores da cara o amarelo do medo súbito. E o seu sorriso dizia que sem dúvida o trovão seguinte deveria ser já mais longe. Uma carroça rápida estorvou alto os ruídos da rua. Involuntariamente o telefone tiritou. O patrão Vasques, em vez de retroceder para o escritório, avançou para o aparelho da sala grande. Houve um repouso e um silêncio e a chuva caía como um pesadelo. O patrão Vasques esqueceu-se do telefone, que não tocara mais. O moço mexeu-se, ao fundo da casa, como uma coisa incómoda.

Uma grande alegria, cheia de repouso e de livração, desconcertou-nos a todos. Trabalhámos meio tontos, agradáveis, sociáveis com uma profusão natural. O moço, sem que ninguém lho dissesse, abriu amplas as janelas. Um cheiro a qualquer coisa fresca entrou, com o ar de água, pela grande sala de adentro. A chuva, já leve, caía humilde. Os sons da rua, que continuavam os mesmos, eram diferentes. Ouvia-se a voz dos carroceiros, e eram realmente gente. Nitidamente, na rua ao lado, as campainhas dos eléctricos tinham também uma socialidade connosco. Uma gargalhada de criança deserta fez de canário na atmosfera limpa. A chuva leve decresceu.

Eram seis horas. Fechava-se o escritório. O patrão Vasques disse do guarda-vento entreaberto, «Podem sair», e disse-o como uma bênção comercial. Levantei-me logo, fechei o livro e guardei-o. Pus a caneta visivelmente sobre a depressão do tinteiro, e avançando para o Moreira, disse-lhe um «até amanhã» cheio de esperança, e apertei-lhe a mão como depois de um grande favor.

s.d. 
Livro do Desassossego por Bernardo Soares.Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.  - 48.
"Fase confessional", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol II. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.

Nota: (Quando tudo o que fizemos
Planeamos
Construímos
Criamos
Amamos 
É destruído pelas mentiras e falta de carácter
De quem menos esperamos
Destruído pela pessoa 
Com quem planeamos
Para quem construímos 
Para quem criamos 
A quem amamos
E que tanto se comprometeu
Morre tanta coisa dentro de nós... 
E essa sim, é a maior perda da vida.
Viver aniquilada por dentro.) 

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