Quero-me rendida no teu corpo lasso - (Análise de poema de Fernando Pessoa)

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Quero-me rendida no teu corpo
Lasso
Onde quente de ti
Nos silêncios em que te ouço
Te amo.
Em amplo abraço
Saciando-me na tua pele
Porque me electrizas
Em ondas e arrepios
Quero ler-te sedenta de enigmas
Como se me viesses de dentro
Inequívoco
Como se fosse também eu, tua pertença
Desde sempre
Nas longínquas palavras e melodias nossas
esgueiradas em memórias da alma
tudo regressa à raiz por ser seiva
assim pugno por nascer tua liquida
em cada nascente uma fonte como um grito
em cada canto um poeta maldito, mas profeta
em cada poema que o fogo arda indizível
que o caminho se abra em brutal emanação
como o idioma invicto
em que professo esta rendição

                 Camila Carreira


«Na casa defronte de mim e dos meus sonhos» 
Interpretar um poema de Álvaro de Campos
A interpretação que se segue (e que, apesar da sua extensão, optámos por apresentar num só post) é da autoria de Maria Regina Rocha, professora de Português.

Como ponto prévio, será de referir que devemos olhar para um poema como um todo coerente: o poeta escreveu 9 estrofes (e não 8 ou 10), porque considerou que elas traduziam um pensamento com uma determinada unidade e, quando lhe colocou uma data e o deu por terminado, é porque algo que para o poeta era coerente ali ficou plasmado. Importa, pois, que nós, os seus leitores, estejamos à altura de o compreender. As palavras do poema, os versos, a pontuação, nada ali está por acaso: são peças de um puzzle coerente. Tentaremos, então, perceber essa coerência de pensamento numa análise estrofe a estrofe e verso a verso. Segue-se a transcrição do poema.

Na casa defronte de mim e dos meus sonhos,
Que felicidade há sempre!

Moram ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi.
São felizes, porque não são eu.

As crianças, que brincam às sacadas altas,
Vivem entre vasos de flores,
Sem dúvida, eternamente.

As vozes, que sobem do interior do doméstico,
Cantam sempre, sem dúvida.
Sim, devem cantar.

Quando há festa cá fora, há festa lá dentro.
Assim tem que ser onde tudo se ajusta —
O homem à Natureza, porque a cidade é Natureza.

Que grande felicidade não ser eu!

Mas os outros não sentirão assim também?
Quais outros? Não há outros.
que os outros sentem é uma casa com a janela fechada,
Ou, quando se abre,
É para as crianças brincarem na varanda de grades,
Entre os vasos de flores que nunca vi quais eram.

Os outros nunca sentem.
Quem sente somos nós,
Sim, todos nós,
Até eu, que neste momento já não estou sentindo nada.

Nada! Não sei...
Um nada que dói...

Só é possível obter uma ideia geral precisa do poema no final da sua leitura e da análise verso a verso. No entanto, após uma leitura de todo o poema, apenas leitura, sem ainda se proceder a análise, sobressai a ideia geral de que o sujeito poético se sente diferente de outros que observa e que tal situação lhe causa sofrimento. Passemos, então, à interpretação do poema estrofe a estrofe.

1.ª estrofe - O sujeito poético diz que na casa defronte de si e dos seus sonhos existe felicidade.
A casa não está dentro dos seus sonhos (na sua imaginação), mas «defronte» de si e «defronte» dos seus sonhos. Tal significa que aquela casa está defronte do sujeito poético no momento em que ele sonha, em que ele divaga, em que deixa o pensamento correr. E que nessa casa existe felicidade. A referência a essa felicidade é expressa por um verso exclamativo («que felicidade há sempre!»), sugerindo a admiração do poeta, eventualmente a estranheza, pelo facto de haver felicidade, ou pela dimensão dessa felicidade («que felicidade»), ou pela sua perenidade («há sempre»).

2.ª estrofe - No primeiro verso da estrofe, o sujeito poético especifica quem vive na casa: são pessoas que o poeta já viu, mas que verdadeiramente não conhece («pessoas que desconheço, que já vi mas não vi»). É compreensível: são pessoas para as quais o poeta já olhou, mas que, propriamente, não conhece, não sabe quem são nem o que pensam (viu, mas não viu).No segundo verso da estrofe, retoma a ideia da felicidade referida na primeira estrofe: essas pessoas são felizes. E acrescenta que o são porque não são ele. Começa aqui a expressão da diferença: se as pessoas são felizes porque não são o poeta, tal significa, por um lado, que aquelas pessoas têm uma perspectiva da vida diferente da do poeta (e é porque a têm que conseguem ser felizes: se fossem como o poeta, não seriam felizes), e, por outro lado, que o poeta não é feliz.

3.ª, 4.ª e 5.ª estrofes - Estas três estrofes têm uma unidade: caracterizam a felicidade das pessoas que o poeta observa.
Na 3.ª estrofe são referidas crianças que brincam, sem consciência da passagem do tempo («eternamente»), numa alegria de quem é inconsciente, de quem vive «entre vasos de flores», ou seja, rodeado do que é belo, sem a noção da realidade, do sofrimento.
Na 4.ª estrofe, é referido o cantar que ecoa dentro da casa, também sugestivo da alegria de quem canta fechado no seu mundo, na simplicidade da felicidade doméstica.
Nestas duas estrofes, repete-se a expressão «sem dúvida» (vv. 7 e 9), um comentário do próprio sujeito poético, que dá como certas essas características da vida dos outros: não tem dúvidas de que as crianças usufruem da felicidade e de que as pessoas cantam (isso ele vê, é a sua certeza).
O verso 10 («Sim, devem cantar.») traduz a constatação da lógica daquele tipo de viver: sim, têm de cantar, é lógico que cantem («dever» significa aqui obrigação: é sinónimo de «ter de»)[1]. Essa lógica é explicada na 5.ª estrofe: para aquelas pessoas tudo se ajusta, tudo está certo (a festa que revelam exteriormente é a que sentem interiormente). O verbo «dever» do verso 10 tem correspondência, no verso 12, na expressão «ter que» («Assim tem que ser»).
Então, as pessoas que o sujeito poético observa seguem o que é natural, cumprem a sua função de pertença ao meio em que se inserem, a cidade. O verso «O homem [ajusta-se] à Natureza, porque a cidade é Natureza» poderá interpretar-se como a tradução da harmonia do mundo que o poeta observa: a cidade é, para o homem que nela vive e à qual pertence, a Natureza[2].

6.ª estrofe - significa o seguinte: que felicidade o poeta não ser como aquelas pessoas! Observe-se que o verbo ser não está na 3.ª pessoa do plural, mas no singular. Se o verso fosse «Que grande felicidade não serem eu!», tal significaria que as pessoas eram felizes por não serem o poeta, ou que o poeta se regozijava por elas não serem como ele, mas o que é dito é totalmente diferente: que bom o poeta não ser assim, como essas pessoas!
Campos recusa identificar-se com aqueles embotados ou inconscientes que conseguem ser felizes.

7.ª estrofe - Depois desse verso de afirmação consciente da diferença e da recusa de uma felicidade apenas apanágio dos inconscientes, o sujeito poético como que pára para se interrogar sobre o que acabou de pensar e de escrever: «Mas os outros não sentirão assim também?»[3] (v. 15). Este verso quer dizer o seguinte: Será que os outros não pensam como o sujeito poético? Isto é, será que os outros também não se sentem diferentes?
Esta interrogação retórica leva o poeta a reflectir sobre o facto de, afinal, ninguém saber o que se passa no íntimo dos outros, pois o sentimento de cada um é algo pessoal, não podendo ser vivenciado por mais ninguém (v. 16): existe incomunicabilidade entre os seres no que diz respeito à revelação dos sentimentos (v. 17 – a metáfora da «casa com a janela fechada»: as pessoas não revelam o que sentem).
O poeta acrescenta que, quando há indícios de revelação de sentimentos («quando se abre» a janela – v. 18), ou há um vislumbre da felicidade inerente a quem não tem consciência da vida, a quem não pensa (a metáfora das crianças que brincam na varanda de grades, entre vasos de flores – vv. 18-20) ou de uma felicidade aparente («vasos de flores que nunca vi quais eram» – v. 20).

8.ª estrofe - Nesta estrofe, o poeta conclui o raciocínio desenvolvido na anterior, especificando que desconhecemos o que se passa no íntimo de cada um (v. 21 – «os outros nunca sentem») e que só é possível sentir enquanto primeira pessoa («nós» – v. 22).
Especifica, então, que nesse «nós» se integra o «eu» do sujeito poético (v. 24), mas, em vez de referir o que está a sentir – que era aquilo de que o leitor estaria à espera, pois, se quem sente somos «nós» (vv. 22-23), o «eu» também sentiria –, afirma, inesperadamente, que naquele momento já não está sentindo nada. Neste verso final da penúltima estrofe são, assim, de salientar dois aspectos: o facto de o poeta já ter sentido, já se ter identificado com os que constituem «nós», e de, naquele momento, já não estar sentindo nada. Surge, aqui, subtilmente, a «inépcia congénita para os sentimentos humanos e simples»[4], característica de Álvaro de Campos.

9.ª estrofe - O sujeito poético interroga-se, então, sobre o facto de não estar sentindo nada («Nada?»), considerando não ter a certeza disso («Não sei…») e explicando esse reticente «Não sei…»: é que esse tal «nada», afinal, «dói». O último verso («Um nada que dói») consiste, pois, num oxímoro que pode ser interpretado de duas formas:
– o facto de não estar a sentir nada incomoda o sujeito poético, fá-lo sofrer;
– o sujeito poético não sabe se, realmente, não está a sentir nada, pois esse tal hipotético «nada» «dói», fá-lo sofrer, isto é, fá-lo sentir.
O sujeito poético sugere, na última estrofe, que sente amargura por se aperceber de que não tem a capacidade de sentir felicidade: recusa a hipotética felicidade que os outros parecem deixar transparecer nos raros momentos em que se revelam, mas não encontra alternativa. O sujeito poético opta pela clarividência da impossibilidade de se sentir feliz, mas, simultaneamente, sofre. É que não está na sua natureza ser capaz de ser inconsciente de tal modo que pudesse sentir-se feliz sem se aperceber de que tal sentimento seria revelador da ausência de consciência[5].

Concluindo,

este poema de Álvaro de Campos é característico da sua fase de tédio, estado de alma traduzido num dos textos do Livro do Desassossego[6] de que se podem seleccionar alguns excertos: «O tédio é, sim, o aborrecimento do mundo, o mal-estar de estar vivendo, o cansaço de se ter vivido; o tédio é, deveras, a sensação carnal da vacuidade prolixa das coisas (…) o aborrecimento de outros mundos, quer existam quer não; o mal-estar de ter que viver, ainda que outro, ainda que de outro modo, ainda que noutro mundo (…).»

O poema traduz, assim, a angústia existencial de quem está condenado a ver a felicidade dos outros, impossibilitado, pela sua natureza de ser pensante, de nela entrar e de usufruir qualquer bem-estar, dada a lucidez da percepção da inexistência de alternativa.

Poderá, naturalmente, haver outras interpretações do poema. O que importa é ensinar aos alunos que a interpretação tem de incidir na totalidade do poema, na compreensão de todas as peças que dele fazem parte e que se interligam num todo coerente, proporcionando-nos uma determinada revelação do mundo do «eu».

E, quando o «eu» é Fernando Pessoa em vertente de Álvaro de Campos, é sempre um desafio a sua interpretação.
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[1]No Livro do Desassossego, do heterónimo Bernardo Soares, o assunto é objecto de reflexão (os sublinhados são nossos):
«A monotonia das vidas vulgares é, aparentemente, pavorosa. Estou almoçando neste restaurante vulgar, e olho, para além do balcão, para a figura do cozinheiro, e, aqui ao pé de mim, para o criado já velho que me serve, como há trinta anos, creio, serve nesta casa. Que vidas são as destes homens? Há quarenta anos que aquela figura de homem vive quase todo o dia numa cozinha; tem umas breves folgas; dorme relativamente poucas horas; vai de vez em quando à terra, de onde volta sem hesitação e sem pena; armazena lentamente dinheiro lento, que se não propõe gastar; adoeceria se tivesse que retirar-se da sua cozinha (definitivamente) para os campos que comprou na Galiza; está em Lisboa há quarenta anos e nunca foi sequer à Rotunda, nem a um teatro, e há um só dia de Coliseu — palhaços nos vestígios interiores da sua vida. Casou não sei como nem porquê, tem quatro filhos e uma filha, e o seu sorriso, ao debruçar-se de lá do balcão em direcção a onde eu estou, exprime uma grande, uma solene, uma contente felicidade. E ele não disfarça, nem tem razão para que disfarce. Se a sente é porque verdadeiramente a tem. (…)
Revejo, com um pasmo assustado, o panorama destas vidas, e descubro, ao ir ter horror, pena, revolta delas, que quem não tem nem horror, nem pena, nem revolta, são os próprios que teriam direito a tê-las, são os mesmos que vivem essas vidas. É o erro central da imaginação literária: supor que os outros são nós e que devem sentir como nós. Mas, felizmente para a humanidade, cada homem é só quem é, sendo dado ao génio, apenas, o ser mais alguns outros.
Tudo, afinal, é dado em relação àquilo em que é dado. Um pequeno incidente de rua, que chama à porta o cozinheiro desta casa, entretém-no mais que me entretém a mim a contemplação da ideia mais original, a leitura do melhor livro, o mais grato dos sonhos inúteis. E, se a vida é essencialmente monotonia, o facto é que ele escapou à monotonia mais do que eu. E escapa à monotonia mais facilmente do que eu. A verdade não está com ele nem comigo, porque não está com ninguém; mas a felicidade está com ele deveras.»

[2] Segundo o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de Morais, 10.ª edição, Natureza, substantivo próprio (com letra maiúscula) significa: «Conjunto de todos os seres de que se compõe o Universo e dos fenómenos que nele se produzem»; «O Mundo físico; o conjunto dos fenómenos físicos e das causas que os determinam»; «Conjunto das forças que presidem aos diversos fenómenos de que os seres criados são objecto no espaço e no tempo». Saliente-se esta última acepção.
[3] No poema que tem como verso inicial «Ao volante do Chevrolet, pela Estrada de Sintra», diz o poeta (vv. 19-21):
« À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.»
[4] Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa, Verbo, p. 121.
[5]O poeta traz consigo «o espinho essencial de ser consciente», como afirma no poema «Vilegiatura» (versos 12 a 15), escrito na mesma altura (1934):
«Vim para aqui repousar, Mas esqueci-me de me deixar lá em casa, Trouxe comigo o espinho essencial de ser consciente, A vaga náusea, a doença incerta, de me sentir.»
[6] Bernardo Soares Pessoa, Livro do Desassossego, ed. Richard Zenith (1988), n.º 381, datado de 28.09.1932.

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