Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)

Alberto Caeiro

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II - O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no Mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar...
8-3-1914 - “O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa.

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A genialidade e complexidade do pensamento do autor, revelada em belos jogos de palavras é sem margem de dúvida a marca mais relevante de Fernando Pessoa. Sempre me cativaram, inspiraram e intrigaram, os seus poemas.
Sinto empatia para com o paradoxo de Pessoa oscilando, dividido entre o amar a vida e desprezar a vida.
E neste poema em específico, identifico-me e aprecio a forma como ele expressa e sente o "pasmo" essencial pela coisas simples da vida... um pasmo que ele compara, de forma genial, ao de uma criança que acaba de chegar à vida e ao mundo, onde tudo é novidade e visto sob a pureza de um olhar sem preconceitos, limpo e óbvio como um girassol.
E é isso que caracteriza a alma de um poeta, ver a vida o mundo e mesmo as trivialidades, com um olhar único, com pasmo, com novidade... E isso é criatividade, criação. Arte...

Devotado à natureza, Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, viveu quase toda a sua existência no campo, como declarou seu próprio inventor. Com efeito, aquele é o poeta que aceita o mundo exatamente como ele é, sem ter a necessidade de pensar ou investigar os fenômenos e suas causas. Valoriza apenas a observação através dos sentidos, desconsiderando passado - porque recordar é atraiçoar a natureza, que é apenas o agora, e futuro - já que este é recinto de miragens.
É bem verdade que sua poesia encerra uma tentativa de negar a metafísica, atribuindo-se-lhe criticamente uma antimetafísica: aquela de não pensar em nada. Observa-se, portanto, o propósito do poeta em rejeitar a orientação constante da humanidade na busca de um sentido transcendente em tudo aquilo que existe, e promover uma reconciliação do homem com a natureza, libertando-o de sua relação de submissão para com a necessidade de compreensão dos entes e dos fatos.

Vários seres num só
Fernando Pessoa

Não sei quem sou, que alma tenho. Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo.
Sou variamente outro do que um, eu que não sei se existe, se são esses outros. Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpetuamente me ponta traições de alma a um caráter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenho. Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas, uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas. Como o panteísta se sente árvore e até flor, eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada, por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.

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