SÓ SE VIVE UMA VEZ
Descobri que deveras existia
Ornada de ouro, luz e cor
Velejada de brisas e amor
E eu que nem sabia!
Fascinada, emergi das trevas,
Despertei, voraz, da abulia.
Atónita acarinhei o horizonte
Que sedutor, resplandecia
E de olhar ávido, sedento e aflito
Ansiei por enlaçar o infinito.
Libertei-me brusca, como um grito
Inquieta não podia conter nem negar,
A fúria inadiável de ir viver e saborear,
O tanto do viver que me forçaram a adiar
Inebriada frágil, como a renascer…
Decidi que queria viver…
Mas eis que ressoou alto do universo:
- É tarde… vociferou cruel, o tempo.
Com um medonho tic-tac de fundo, a bater
- Na vida, para tudo, existe um momento,
E tu atraiçoada e agrilhetada, deixaste-te morrer!
Deixaste a vida, quando estava a acontecer.
O tic-tac, carrasco apressado, fez-me saber
A execução final era eminente, devia ceder.
Contemplei vencida o longe, a vida, tão distante
E de novo tudo ficou escuro e indiferente
Viver, ver o mundo, já nem era fascinante
A minha vida vazia esvaiu-se,
Foi um erro... foi um instante.
**** Camila Carreira ****
Momentos de cultura e curiosidades poéticas...
Bernardo Soares
A alma humana é vítima tão inevitável da dor...
A alma humana é vítima tão inevitável da dor que sofre a dor da surpresa dolorosa, mesmo com o que devia esperar. Tal homem, que toda a vida falou da inconstância e da volubilidade feminina como de coisas naturais e típicas, terá toda a angústia da surpresa triste quando se encontre traído em amor — tal qual, não outro, como se tivesse sempre tido por dogma ou esperança a fidelidade e a firmeza da mulher.
Tal outro, que tem tudo por oco e vazio, sentirá como um raio súbito a descoberta de que têm por nada o que escreve, ou que é estéril o seu esforço por ensinar ou que é falsa a comunicabilidade da sua emoção.
Não há que crer que os homens, a quem estes desastres acontecem, e outros desastres como estes, houvessem sido pouco sinceros nas coisas que disseram, ou que escreveram, e em cuja substância esses desastres eram previsíveis ou certos. Nada tem a sinceridade da afirmação inteligente com a naturalidade da emoção espontânea. E isto parece poder ser assim, a alma parece poder assim ter surpresas, só para que a dor lhe não falte, o opróbio não deixe de lhe caber, a mágoa não lhe escasseie como quinhão igualitário na vida. Todos somos iguais na capacidade para o erro e para o sofrimento. Só não passa quem não sente; e os mais altos, os mais nobres, os mais previdentes, são os que vêm a passar e a sofrer do que previam e do que desdenhavam. É a isto que se chama a Vida.
s.d. Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982. - 443.
"Fase confessional", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol II. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.
Sem comentários:
Enviar um comentário