Poema quero ser a onda do mar

camila carreira, poemas de amor, rosas e cinzas, poetisaQuero ser a onda do mar
Aquela que vai e vem
Sem nunca ficar
Sem ter que se escusar
Sem nada trazer e nada levar
Arrastando tudo sem se apoderar
Sem bagagem para arrecadar
Eterna viajante a ondear
Sem ambicionar
Mais que o manso baloiçar
É uma cortesia do mar
Girando em melodias de embalar
Na ondulação fluída de infinito
Do incessante marear

Muda de humor sem se desculpar
Numa vaga suave prestes a rebentar
Singular, musical ou infernal
Imprevisível fulgente e sedutora
E tantas vezes o ouço gritar
Outras tantas a chorar
Fúrias que não pode calar

          *** Camila Carreira ***

Momentos de cultura e outras curiosidades poéticas 


Fernando Pessoa
Azul, ou verde, ou roxo, quando o sol

Azul, ou verde, ou roxo, quando o sol
camila carreira, poemas de amor, rosas e cinzas, poetisaO doura falsamente de vermelho,
O mar é áspero [?], casual [?] ou mo(le),
É uma vez abismo e outra espelho.
Evoco porque sinto velho
O que em mim quereria mais que o mar
Já que nada ali há por desvendar.

Os grandes capitães e os marinheiros
Com que fizeram a navegação,
Jazem longínquos, lúgubres parceiros
Do nosso esquecimento e ingratidão.
Só o mar, às vezes, quando são
Grandes as ondas e é deveras mar
Parece incertamente recordar.

Mas sonho... O mar é água, é agua nua,
Serva do obscuro ímpeto distante
Que, como a poesia, vem da lua
Que uma vez o abate outra o levanta.
Mas, por mais que descante
Sobre a ignorância natural do mar,
Pressinto-o, vazante, a murmurar.

Quem sabe o que é a alma? Quem conhece
Que alma há nas coisas que parecem mortas.
Quanto em terra ou em nada nunca esquece.
Quem sabe se no espaço vácuo há portas?
Ó sonho que me exortas
A meditar assim a voz do mar,
Ensina-me a saber-te meditar.

Capitães, contramestres — todos nautas
Da descoberta infiel de cada dia ó
Acaso vos chamou de ignotas flautas
A vaga e impossível melodia.
Acaso o vosso ouvido ouvia

Qualquer coisa do mar sem ser o mar
Sereias só de ouvir e não de achar?
Quem atrás de intérminos oceanos
Vos chamou à distância como [?] quem
Sabe que há nos corações humanos
Não só uma ânsia natural de bem

Mas, mais vaga, mais subtil também,
Uma coisa que quer o som do mar
E o estar longe de tudo e não parar.
Se assim é, e se vós e o mar imenso
Sois qualquer coisa, vós por o sentir
E o mar por o ser, disto que penso;
Se no fundo ignorado do existir
Há mais alma que a que pode vir
À tona vã de nós, como à do mar,
Fazei‑me livre, enfim, de o ignorar.

Dai-me uma alma transposta de argonauta,
Fazei que eu tenha, como o capitão
Ou o contramestre, ouvidos para a flauta
Que chama ao longe o nosso coração,
Fazei-me ouvir, como a um perdão,
Numa reminiscência de ensinar,
O antigo português que fala o mar!

9-6-1935
Mensagem - Poemas esotéricos. Fernando Pessoa. (Edição Crítica de José Augusto Seabra.) Porto: Fund. Eng. A. Almeida, 1993  - 107.
1ª publ. in Obra Poética. Fernando Pessoa. (Organização, introdução e notas de Maria Aliete Dores Galhoz.) Rio de Janeiro: Ed. José Aguilar, 1960.

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