Ocultou-se em alcova insondável e chorou
Rei a quem amara traiçoeiro a destronou
E de menina a mulher tão pouco logrou
Senão velas ténues que o vento apagou
Jazigos de solidão que o olvido dizimou
Astros extintos por lágrimas que derramou
E do leito subtérreo vencida murmurou
Árias de despedida do tempo que findou
Num mundo que nunca a abraçou
- Oh mundo
Vagabundo
Monótono rotundo
Maculado imundo
De nuvens de chumbo
Sem sol… moribundo
Em cinza me inundo
De carvão oriundo
E me afundo
Bem fundo
Em triste profundo
**** CAMILA CARREIRA****
Momentos de cultura e outras curiosidades poéticas...
Bernardo Soares
Sou mais velho que o Tempo e que o Espaço porque sou consciente.
Sou mais velho que o Tempo e que o Espaço porque sou consciente. As coisas derivam de mim; a Natureza inteira é a […] das minhas sensações.
Busco-me — não encontro. Quero, e não posso.
Sem mim, o sol nasce e se apaga; sem mim a chuva cai e o vento geme. Não são por mim as estações, nem o curso dos meses, nem a passagem das horas.
Dono do mundo em mim, como de terras que não posso trazer comigo (...)
s.d. Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982. - 97.
"Fase confessional", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol II. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.
Fernando Pessoa
I - A criança que fui chora na estrada.
A criança que fui chora na estrada.Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.
Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.
II
Dia a dia mudamos para quem
Amanhã não veremos. Hora a hora
Nosso diverso e sucessivo alguém
Desce uma vasta escadaria agora.
E uma multidão que desce, sem
Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora.
Ah, que horrorosa semelhança têm!
São um múltiplo mesmo que se ignora.
Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.
E a multidão engrossa, alheia a ver-me, Sem que eu perceba de onde vai crescendo.
Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,
E, inúmero, prolixo, vou descendo
Até passar por todos e perder-me.
III
Meu Deus! Meu Deus! Quem sou, que desconheço
O que sinto que sou? Quem quero ser
Mora, distante, onde meu ser esqueço,
Parte, remoto, para me não ter.
22-9-1933
Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa. (Direcção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno.) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993). - 90.
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