Poema da cor da ira - Álvaro de Campos TRAPO

RAIVA ESCARLATE 

camila carreira, poemas romanticos, versos curtos de amor, blog poesiaO mundo enraivecido manietou-me
Para ostensiva e ferozmente
Estender a mim, os seus agravos
Fez-me refém e serva da sua dor
lustrou de escarlate os tons do seu horror
Sentimos em uníssono, raiva e amor
E tingimos os céus dessa mesma cor
Porque andará o crepúsculo tão irado?
Raiado de veios vermelhos… ensanguentado
Anunciando que o paraíso foi olvidado
E da desumanidade que me fere e tolhe
Ninguém acode ou se assume culpado...
O meu espírito ferido reflete-se no horizonte...
Que enrubesce, e ruge feroz e magoado
Exibe, sem pudor, a ferida que me atenta
A raiva da ingratidão que mutila e atormenta.
Não, e não adianta falsear a verdade
Para ocultar a ti e ao cosmos, tua vil impiedade
Porque, Ele, sagaz e justo, vigia eternamente
Jamais ausente ou indiferente
À cobardia de quem nega a verdade
!

A ira e dor continuarão a avermelhar
Toda a extensão que puderem alcançar
Nos céus e terras e além mar
E ainda assim jamais se irá mitigar
Toda a amplidão da minha ira e dor
Que nunca sequer me deixaste mostrar

*** Camila Carreira***


Momentos de cultura e outras curiosidades poéticas... 


Álvaro de Campos
TRAPO

TRAPO

O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, estava bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.
Antecipação? Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.

Bem sei: a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.
Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efectivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.

Carinhos? Afectos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.

Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer...
Quando foi isso? Não sei...
No azul da manhã...

O dia deu em chuvoso.
10-9-1930
Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).  - 289.
1ª publ. in Presença, nº 34. Coimbra: Fev. 1932.
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