Nenhum corpo é isto...
uno e só
Ignorado e coroado por duros timbres da saudade
latejo intenso ferindo os sentidos
no ócio a alojamos como à fome - ferocidade adentro -
Porque longe e além moram os saudosos
deixam olhos no lugar do tempo
semblantes tristes no lugar da lua
Saudade içada ao vento
Bordada entranhada alinhada na geometria de poemas
Escritos previsíveis retiros
refugio das almas que submergem frias e sós,
Prendidas na raiz da caverna
Outros nas profundezas dos filões pétreos
definha-se como água do mar ao sol
petrificada em cristal
Não falas, mal respiras,
Com todo o peso da solidão
Onde o silêncio cai
e o pensamento voa
Feroz, paciente, acometido, centrífugo...
Firme no vértice do abismo
Camila Carreira
Como se deve analisar um poema
Exemplo do ChatGPT
Este poema, da autoria de Camila Carreira, é uma reflexão profunda sobre a saudade, a solidão e a condição humana. Aqui estão algumas das principais ideias e temas que se destacam:
Exploração da Saudade: O eu lírico inicia com a afirmação de que "nenhum corpo é isto", sugerindo que a identidade e a experiência humana não podem ser reduzidas a uma única forma ou definição. A saudade é apresentada como um tema central, uma força poderosa que molda a experiência do eu lírico.
Intensidade Emocional: A expressão "latejo intenso ferindo os sentidos" evoca uma sensação de dor e intensidade emocional. A saudade não é apenas uma lembrança; é algo que fere e impacta profundamente a vida do eu lírico.
Dualidade e Contraste: O poema contrasta a saudade com a ideia de presença. A imagem de "deixam olhos no lugar do tempo" sugere que a saudade é uma forma de perda e que os olhos (símbolo da visão e do entendimento) estão fixos no passado, enquanto a lua, que representa a luz e a esperança, está ausente.
Natureza e Metáforas: A metáfora da saudade içada ao vento e bordada em poemas sugere que a saudade está presente em toda a arte e na própria vida. Essa ideia de entrelaçar saudade e poesia indica que a escrita é um meio de lidar com essa emoção intensa.
Solidão e Refúgio: A expressão "refúgio das almas que submergem frias e sós" destaca a solidão e a busca por abrigo emocional. O eu lírico parece reconhecer que muitos se sentem presos em suas memórias e experiências, refletindo sobre a condição humana de isolamento.
Busca por Significado: A linha "uns procuram alto até às ramagens de ouro" sugere que alguns buscam esperança e beleza, enquanto outros "nas profundezas dos filões pétreos" exploram a dor e o sofrimento. Isso revela uma busca constante por significado e compreensão nas experiências da vida.
Transitoriedade e Fragilidade: A imagem de definhamento "como água do mar ao sol" ilustra a fragilidade da existência e como a saudade pode consumir a vitalidade. A solidão é apresentada como um fardo, um peso que impede a comunicação e a conexão.
A Profundidade da Saudade: A conclusão do poema, "firme no vértice do abismo, fundo como a saudade", sugere que a saudade é uma experiência profunda, quase abissal. O eu lírico está ciente de que essa emoção é complexa, com raízes que se estendem para além do imediato.
Em suma, o poema é uma poderosa meditação sobre a saudade e a solidão, explorando as nuances da condição humana. A linguagem rica e poética de Camila Carreira proporciona uma reflexão profunda e emocional que ressoa com muitas experiências pessoais.
Teixeira de Pascoaes, in 'Elegias'
Ausência
Lúgubre solidão! Ó noite triste!
Como sinto que falta a tua Imagem
A tudo quanto para mim existe!
Tua bemdita e efémera passagem
No mundo, deu ao mundo em que viveste,
Á nossa bôa e maternal Paisagem,
Um espirito novo mais celeste;
Nova Forma a abraçou e nova Côr
Beijou, sorrindo, o seu perfil agreste!
E ei-la agora tão triste e sem verdor!
Depois da tua morte, regressou
Ao seu velhinho estado anterior.
E esta saudosa casa, onde brilhou
Tua voz num instante sempiterno,
Em negra, intima noite se occultou.
Quando chego á janela, vejo o inverno;
E, á luz da lua, as sombras do arvoredo
Lembram as sombras pálidas do Inferno.
Dos recantos escuros, em segredo,
Nascem Visões saudosas, diluidos
Traços da tua Imagem, arremêdo
Que a Sombra faz, em gestos doloridos,
Do teu Vulto de sol a amanhecer...
A Sombra quer mostrar-se aos meus sentidos...
Mas eu que vejo? A luz escurecer;
O imperfeito, o indeciso que, em nós, deixa
A amargura de olhar e de não vêr...
A voz da minha dôr, da minha queixa,
Em vão, por ti, na fria noite clama!
Dir-se-á que o céu e a terra, tudo fecha
Os ouvidos de pedra! Mas quem ama,
Embora no silencio mais profundo,
Grita por seu amor: é voz de chama!
E eu grito! E encontro apenas sobre o mundo,
Para onde quer que eu olhe, aqui, além,
A tua Ausencia tragica! E no fundo
De mim proprio que vejo? Acaso alguem?
Só vejo a tua Ausencia, a Desventura
Que fez da noite a imagem de tua Mãe!
A tua Ausencia é tudo o que murmura,
E mostra a face triste á luz da aurora,
E se espraia na terra em sombra escura...
Quem traz o outomno ao meu jardim agora?
Quem muda em cinza o fogo do meu lar?
E quem soluça em mim? Quem é que chora?
É a tua Ausencia, Amôr, que vem turbar
Esta alegria etérea, nuvem, asa
De Anjo que, ás vezes, passa em nosso olhar!
O Sol é a tua Ausencia que se abrasa,
A Lua é tua Ausencia enfraquecida...
Da tua Ausencia é feita a minha vida
E os meus versos tambem e a minha casa.
Teixeira de Pascoaes, in 'Elegias'
* Teixeira de Pascoaes, pseudónimo de Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos (Amarante, 8 de novembro de 1877 — 14 de dezembro de 1952). Licenciou-se em Direito em 1901, tendo trabalhado como advogado e, depois, juiz, durante cerca de uma década (atividades que admitiu ter exercido de maneira relutante, uma vez que a sua vocação era a poesia), até se mudar com a família para a Casa de Pascoaes, em Gatão (Amarante), onde se dedicou à gestão das propriedades familiares e à vida literária.
Teixeira de Pascoaes ficou conhecido pela sua apologia da saudade, conceito português com raízes históricas profundas, definível como a ânsia de ter o objeto desejado que se encontra distante e a dor resultante de o não ter consigo. O Saudosismo, porém, foi mais do que a mera cultura de uma emoção, tornando-se também, segundo o autor, a «primeira escola autenticamente portuguesa, essencial, religiosamente portuguesa» e conquistando um lugar na história da literatura e, sobretudo, da poesia nacionais, na transição de Oitocentos para Novecentos. Esta escola, teorizada por Pascoaes, entendia a saudade como um elemento fundamental da identidade lusa que possibilitaria o renascimento da nação face ao desapontamento trazido pela experiência republicana (que não conseguiu resolver alguns problemas socioculturais). A revista «A Águia» (1910-1932), fundada e dirigida por Pascoaes no âmbito do movimento nacionalista “Renascença Portuguesa” («sociedade literária» ativa entre 1912 e 1932), funcionou nos anos iniciais como montra da filosofia do movimento, plasmada em muitos dos trabalhos publicados.
No poema selecionado, “ENCANTAMENTO”, cujos temas centrais considerámos serem o amor e a saudade, o sujeito lírico evoca um tempo passado (notem-se os tempos verbais: «ficava», «sentia», etc.), em que o «tu», figura reiteradamente caracterizada como angelical («a tua doce e angelica Figura», «Tua figura de Anjo radiava»), exerceu uma influência positiva sobre o «eu» e o mundo circundante («Sob os teus pés a terra florescia, / E até meu próprio espírito cantava!»), reforçada não só pelo uso do animismo da terra (pode dizer-se que Pascoaes tinha especial nesta imagem do espírito que fecunda a terra, tendo já referido em 1914, numa conferência, que «A vida animal não é mais do que a terra onde o espírito embebe as raízes para florir além das nuvens e das estrelas.») e da personificação do espírito do sujeito poético, mas também pela efusão lírica resultante do uso das exclamações e das reticências; curiosamente, toda esta carga positiva parece opor-se à categorização do poema como elegia (deduzível a partir do título da obra em que se insere, «Elegias»), ou seja, uma poesia de cunho triste, pelo que só se poderá adequar pelo facto de se tratar de uma felicidade passada e, portanto, distante. Será relevante sublinhar também a forte componente religiosa que se evidencia ao longo de todo o soneto (note-se que Pascoaes e os saudosistas cultivavam o Panteísmo, corrente filosófica que identifica sinais de presença e de atuação divinas em todos os seres da natureza), denunciada pelas referências às características angelicais do «tu» referidas e, sobretudo, pela nomeação direta de Deus no último verso («Nessas horas divinas, quem diria / A sorte que já Deus te destinava!»), que remete para a boa fortuna, não racionalizada, por que o «tu» teria sido bafejado (poderá o leitor subentender que essa sorte estará relacionada com a emoção experimentada pelo «tu», entendida como uma bênção).
Ao nível estilístico, merece-nos particular destaque a musicalidade desta composição, visto que a seleção e a organização lexicais parecem obedecer a determinados padrões sónicos e rítmicos conducentes a uma aliança entre significante e significado, a qual, por sua vez, resulta numa significação própria, acompanhada de particular expressividade. Constituem os sons nasais um exemplo particularmente significativo deste fenómeno: na primeira quadra, «Quantas», «angélica», «Embebido num», «Num enlevo»; na segunda quadra, «de me encantar», «Deante […] mimosa», «Suavemente sentia-me», «sombra apenas e ternura»; no primeiro terceto, «inocência», «Anjo»; no segundo terceto, «meu cantava», «divinas, quem», «destinava!». Verificamos, face aos exemplos, que os sons nasais vocálicos sonoros (as vogais nasais correspondentes a: /en/, /em/, /an, /om/, /um/) e consonânticos (contínuos e soantes: /m/ e /n/), predominantes no título da composição poética, “ENCANTAMENTO” (/en/an/m/en/), na primeira quadra e, sobretudo, na segunda quadra parecem cobrir o poema com um véu de melancolia e brandura, que está em sintonia com a mensagem do mesmo, concorrendo para uma estreita relação entre o som e o sentido. Também de notar, ao nível formal, que todos os versos do soneto apresentam rima cruzada (com o esquema rimático ABAB/ABAB/CDC/DCD), o que estabelece entre os versos intervalos regulares que, com o seu paralelismo, cativam o ouvinte.
Em suma, e não esquecendo a temática que preside à nossa série, diremos que a representação do amor veiculada pela composição poética que aqui apresentamos é, sem dúvida, geradora de uma reação positiva no sujeito lírico (sublinhada pela riqueza fónica evidenciada). Tudo isto, porém, com uma importante particularidade: a dita reação reporta-se a experiências passadas – que são, será seguro dizer, aquelas que recordamos com saudade.
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