Poema Reviver o passado sem presente. (Análise do poema Futuro de José Saramago)

A vida escreve-se no presente
Mas toda me versa abrupta do passado
Vertida em memórias pujantes e estridentes
Derramam impiedosas na alma
Persistem e assombram como fantasma
Nítidas... pesadas, vincadas
Ofuscam o presente como o fim de tarde que vem e o dia apaga
Fria de luz fumacenta e vagarosa
esforço de sombras a arrastar
Horas sem fim, o passado sempre a chegar
O instante abalroado nublado
Condenado a nunca singrar
Extinguem-me sorrisos neste Novembro cinza e maduro
Porque o Outubro inevitável foi irremediável e duro -
Imutável escuro
Janela que não abriu nem deu sóis
E por mais que se superem todas as alvoradas –
Não alcanço luz
Agrilhoada no vicio cego de memórias
Vício que não me liberta do rigor,
Olhos presos lá atrás na dor
Fogueira viva onde regresso sem amor
a queimar quimeras como pétalas secas
Sou em mim meu único exílio 
Em que o tempo se vive depois
Vou indo por aí que nem sombras
Somando êxtases na orla das palavras que redijo, vã


Camila Carreira 

COMO ANALISAR O POEMA 

Este poema evoca uma profunda sensação de introspeção e melancolia, explorando a relação entre o passado e o presente. Aqui estão algumas das principais ideias e temas que parecem emergir:

  1. Relação com o Passado: O eu lírico reflete sobre como as memórias do passado influenciam sua vida presente. O passado é descrito como algo pesado e persistente, que assombra e obscurece o presente, comparando essas memórias a fantasmas que não podem ser facilmente deixados para trás.

  2. Luz e Escuridão: Há uma forte dualidade entre a luz e a escuridão. O passado é associado a uma "escuridão imutável", enquanto o presente é caracterizado pela busca de luz que parece inatingível. Isso sugere uma luta interna entre a esperança e a dor.

  3. Condições Emocionais: O poema expressa um profundo cansaço emocional e uma sensação de aprisionamento nas memórias. O eu lírico sente-se "agrilhoado" e incapaz de se libertar do peso do passado, que diminui sua capacidade de alegria e contentamento.

  4. Sazonalidade da Vida: A referência a Outubro e Novembro sugere uma transição de um tempo de abundância e cor (Outubro) para um estado mais sombrio e reflexivo (Novembro). Isso pode simbolizar a passagem do tempo e as mudanças emocionais que vêm com isso.

  5. Solidão e Exílio: O eu lírico menciona ser seu "único exílio", o que implica que a solidão e a luta interna são aspectos centrais de sua experiência. A ideia de ser prisioneiro de suas memórias indica que o eu lírico se sente isolado e incompreendido.

  6. A Busca por Significado: O poema sugere uma busca por significado nas palavras e na escrita, que é apresentada como uma forma de expressão, mas também como uma luta. O eu lírico sente que seus esforços podem ser em vão, mas ainda assim busca transmitir suas experiências.

Em suma, quem escreveu este poema parece querer transmitir a complexidade das emoções humanas, a luta entre o passado e o presente, e a sensação de aprisionamento em memórias dolorosas, enquanto tenta encontrar luz e significado em meio à escuridão. É uma exploração sensível e reflexiva da condição humana.



Poemas famosos

Passado, Presente, Futuro

José Saramago


Eu fui. Mas o que fui já me não lembra:
Mil camadas de pó disfarçam, véus,
Estes quarenta rostos desiguais.
Tão marcados de tempo e macaréus.


Eu sou. Mas o que sou tão pouco é:
Rã fugida do charco, que saltou,
E no salto que deu, quanto podia,
O ar dum outro mundo a rebentou.


Falta ver, se é que falta, o que serei:
Um rosto recomposto antes do fim,
Um canto de batráquio, mesmo rouco,
Uma vida que corra assim-assim.


Na primeira obra poética de José Saramago descobre-se uma poesia de liberdade, de fraternidade e de luta. Uma luta disfarçada, por dentro das palavras. Pelo interior labiríntico de respiração que habitam todos estes poemas, publicados pela primeira vez em 1966. Digamos que eram os «poemas possíveis» da altura, quando a censura espiava a alma dos escritores. E no entanto, as convicções profundas de Saramago já são bem visíveis em poemas como «Criação»: «Deus não existe ainda, nem sei quando / Sequer o esboço, a cor se afirmará / No desenho confuso da passagem / De gerações inúmeras nesta esfera. / Nenhum gesto se perde, nenhum traço, / Que o sentido da vida é este só: / Fazer da Terra um Deus que nos mereça, / E dar ao Universo o Deus que espera.»
– Diário de Notícias, 9 de outubro de 1998 –


ARTE POÉTICA
Vem de quê o poema? De quanto serve
A traçar a esquadria da semente:
Flor ou erva, floresta e fruto.
Mas avançar um pé não é fazer jornada,
Nem pintura será a cor que não se inscreve
Em acerto rigoroso e harmonia.
Amor, se o há, com pouco se conforma
Se, por lazeres de alma acompanhada,
Do corpo lhe bastar a presciência.


Não se esquece o poema, não se adia,
Se o corpo da palavra for moldado
Em ritmo, segurança e consciência.
– José Saramago, em “Os Poemas Possíveis”. 6ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1997.


PROCESSO
As palavras mais simples, mais comuns,
As de trazer por casa e dar de troco,
Em língua doutro mundo se convertem:
Basta que, de sol, os olhos do poeta,
Rasando, as iluminem.
– José Saramago, em “Os Poemas Possíveis”. 6ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1997

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