Não mente
Nu de véus ausente
Inflama o âmago e a matéria
Traslada-me translúcida veemente
Multiplica-se como bactéria
Paixão que alastra impunemente,
Transborda farta como enchente
Vaza sentires até à carne, plena.
Apossa-se e serena
Não é doçura, não é carência,
Queima, é sentida ardência.
Questão de sobrevivência
Urgência… inclemência
Exige abraços fortes,
Palavras bruscas e cruas,
Feridas abruptas e cortes,
Pactos de vida e de mortes
Talvez nem a suportes
Mas paixão é assim...
Vertigem e desnortes
Frenesim do sol até à lua
Êxtase em que me sinto tua,
Enquanto tu me feres de paixão... nua
****CAMILA CARREIRA ****
Momento de Cultura...
Fernando Pessoa
I - Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
CHUVA OBLÍQUA
I
Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...
O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...
Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...
Não sei quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...
8-3-1914
«Chuva Oblíqua». Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). - 27.
1ª publ. in Orpheu, nº 2. Lisboa: Abr.-Jun. 1915.
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